sábado, 9 de março de 2013

SABÁTICO

CRÍTICA A UM MODO DE PRODUZIR RIQUEZA

Leia a seguir um trecho de Considerações Sobre o Método, estudo de José Arthur Giannotti escrito para a nova edição de O Capital, de Karl Marx, cujo primeiro de três volumes chega às livrarias dia 21

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De corpo presente, mas sem ser o foco

Três anos e 4 meses numa favela indiana renderam à jornalista americana Katherine Boo um premiado livro, 'Em Busca de Um Final Feliz', exemplo vigoroso do que pode a escrita de não ficção comprometida com o outro

 

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O difícil desafio da primeira frase

Algumas lições de 'Good Prose: The Art of Nonfiction'

 

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Pioneiro, Euclides é marco

Autor de 'Os Sertões' é tido como referência de um gênero que volta a crescer no País

 

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Retrato de uma saga familiar infeliz

Nicolau II, da Rússia, Jorge V, da Inglaterra, e Guilherme II, da Alemanha, que eram primos, protagonizam 'Os Três Imperadores', de Miranda Carter; ela falou ao ‘Estado’ sobre seu trabalho

 

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O FIM DA BELLE ÉPOQUE

 ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

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Paisagem projetada sobre o destino

Em 'Lanterna Mágica', que ganha nova edição no Brasil, com prefácio de Woody Allen, o diretor sueco Ingmar Bergman revisita suas memórias - um relato com a mesma beleza dura de seus filmes

 

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Paparazzi de nós mesmos - Marcelo Rubens Paiva

 Estado de S.Paulo - 09/03/2013

Já contou quantas vezes desejou voltar ao passado em sonos perdidos, bebedeiras, ou sonos perdidos por causa de bebedeiras? 

Para rever parentes, revisitar locais hoje degradados, sentir o fedor de antigamente, saudades que se confundem com vontade de reescrever a própria história, repensar em decisões, arrependimentos, chance de vislumbrar como teria sido se aquilo ou aquele não descarrilasse, dar mais importância a coisas que, por causa da imaturidade e inexperiência, passaram batidas, e, quem sabe, refazer histórias de amor que foram interrompidas porque não mandou aquela carta, falou o que deveria ter guardado, se calou, telefonou na hora errada, não insistiu quando desconfiavam da sua incerteza, passou do limite, duvidou de quem era inocente, ouviu a razão, não o coração, ou o contrário, fingiu não ver, ignorou sinais, não entendeu códigos, mensagens, não acompanhou mudanças, alternâncias, não compactuou, não emprestou o ombro, não parou para ouvir, não enxugou lágrimas, oscilou, se omitiu, não assumiu, admitiu nem reprimiu, abraçou, nem escondeu direito, presunçoso, pretensioso, precavido, não viu o que estava desfocado.

Você voltaria mesmo ao passado?

Não tinham inventado Twitter, Face, Instagram. Redes sociais eram redes compartilhadas em barcos que subiam o São Francisco e o Amazonas. Esquece celular, GPS, código de barras, Google, ímã de geladeira, post-it. Postar era enviar um cartão-postal com garranchos, resumido em dois parágrafos à caneta a viagem para um amigo.

Seria bom rever cachos nas garotas, rugas nas coroas, acampar em praias desertas e despoluídas, receber delivery na cozinha, não precisar descer para pegar uma pizza. Mas como fotografar e postar a sobremesa, marcar um evento com a rapaziada das antigas, conferir como a ex engordou, e seu novo namorado não tem nada a ver com você, protestar contra o presidente do Senado, a hidroelétrica, o massacre de índios, checar a grafia correta da capital da Coreia do Norte e do seu líder supremo?
Se hoje somos paparazzi de nós mesmos, como lidaríamos com a vida sem exibição do nosso melhor perfil, panorama das nossas férias, e narraríamos nossas preferências e indignações não para um, mas para milhares?

Imagino que um sujeito de hoje se sentiria preso no anonimato de ontem. E aflição pelo silêncio da sua voz, invisibilidade das suas imagens e do registro da rotina. Sofreria por voltar à banalidade, ao comum.

Até aos poucos voltar à paz da vida privada, depois de colocar a Barsa herdada na ordem alfabética, ao lado do Guia de Ruas e Almanaque Abril comprados na banca. Poderia então relaxar, escrever cartas, mandar um romântico telegrama fonado pelo 135, marcar a hora de acordar pelo serviço de despertador automático 134. Sem nenhuma pressa, tiraria a poeira grudada no diamante da agulha do toca-discos e abriria um bom livro, que cheiraria mofo e memória.

***
Voltar ao passado foi o plot de dois filmes, De Volta para o Futuro (1985) e Peggy Sue – Seu Passado a Espera (1986), de dois cineastas da mesma turma, Spielberg (como produtor) e Coppola, que abriram as gavetas da reprimida nostalgia e revisitaram tempos de escola, para dar uma pausa no pessimismo da Era Reagan, cuja doutrina, “a paz através da força”, alimentou tensões na Guerra Fria, e na expansão e intolerância do fundamentalismo religioso, desordem ambiental, avanço da cocaína e, por fim, surgimento da aids como punição a uma geração acusada de “desvairada”.

Eles homenagearam, entre outras coisas, o próprio cinema, já que as salas se transformavam em pulgueiros para o exercício do onanismo, culpa do novo satã, a televisão, retratada como o primeiro degrau do inferno em Poltergeist – O Fenômeno, também produzido por Spielberg, e Videodrome, de Cronenberg.

Peggy Sue (Kathleen Turner), de 43 anos, recém-separada, desmaia durante a festinha de 1985 de confraternização da escola. Acorda em 1960, quando começava a namorar o futuro marido Charlie Bodell (Nicolas Cage). De mão beijada, a oportunidade de remover o calo que sempre atrapalhou a relação: a frustração dele por não ter virado estrela do rock.

Peggy mata as saudades dos avós, transa com o poeta beat da escola, sugere a um nerd o investimento em roupas de ginástica e convence o namorado a desistir do estilo musical – quarteto vocal de soul –, cuja invasão inglesa iminente iria golpear.

Em De Volta para o Futuro, que não sei por que não se chama De Volta ao Presente, ou Volta ao Passado, você se lembra: Marty McFly (Michael J. Fox), skatista que, em 1985, é amigo de Dr. Brown, cientista maluco, volta ao passado numa máquina do tempo, um DMC-12 fabricado na Irlanda do Norte pela DeLorean Motor Company e que ficou famoso por causa do filme. Reencontra a mãe, Lorraine, em 1955, às vésperas do baile em que ela beijou a vítima de bullying, George, o pai.
O problema é que, num dilema freudiano, o filho passa a ser objeto de desejo da mãe, que o chama de Calvin por causa da marca Calvin Klein bordada na sua cueca – num tempo em que as pessoas bordavam o nome nas roupas, ou melhor, as avós das pessoas –, considerado o merchandising mais bem bolado da época.

Algumas piadas ficaram eternizadas. Como quando Marty pede uma Pepsi Diet, e o balconista diz que não é médico, então corrige e pede uma Pepsi Free. “Você quer beber um refrigerante e não pagar?”. Ou quando diz vir do tempo em que Ronald Reagan é presidente. “Jerry Lewis é o vice?”, escuta.
McFly inventa o skate e o rock. Ele e Peggy Sue voltaram ao passado acidentalmente. Aproveitaram para mexer pauzinhos e corrigir deslizes amorosos que repercutiriam no futuro (presente). Tentaram reascender a chama do amor que apagava.

Para os dois, ele não acaba por si. Acabamos com ele, induzidos por elementos que contaminam a sua pureza. O marido de Peggy pôde viver sem o trauma de ter o sonho juvenil frustrado. O pai de McFly deixou de ser um “looser” por ter reagido ao bullying no passado. E sua mãe continuou magra. Não encontrou no copo de uísque o ouvido que faltara.

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Rolou uma controvérsia sobre a data do futuro que Dr. Brown visitou no final do filme, que sugere o nome De Volta para o Futuro. Ele viaja para 21 de outubro de 2015 e volta. Ao invés do plutônio, o combustível do DeLorean passou a ser lixo orgânico. Aparece daqui a dois anos. Atravessará a barreira do tempo graças ao, quem diria, biocombustível. Vai bombar no Twitter.

O canto dos pássaros - CACÁ DIEGUES

O GLOBO -  09/03/2013

A verdade não é uma bastarda pagã. Ela é filha da natureza com as circunstâncias, e afilhada de nossos interesses e opiniões. Nenhuma imagem, por mais concreta que seja, terá sempre o mesmo significado em diferentes circunstâncias.

Presente do governo francês ao povo americano, a Estátua da Liberdade, na entrada do porto de Nova York, é um belo e nobre símbolo de princípio consagrado pela cultura ocidental. Mas idêntica Estátua da Liberdade, diante de shopping na Barra da Tijuca, é apenas ridícula manifestação de mimetismo e arrogância sub-culturais, que nos quer fazer crer que ali estamos em Nova York.

Na história política do continente, Simon Bolívar foi tratado como aventureiro oportunista pelo insuspeito Karl Marx. E, no entanto, por seus feitos nas guerras pela independência da América hispânica, tornou-se símbolo do anti-imperialismo contemporâneo e pai da pátria venezuelana, assim consagrado por Hugo Chávez.

Assim também, o próprio Hugo Chávez não pode ser tratado como mero e tradicional caudilho populista, imagem que nos vem à mente quando lembramos de seus gestos demagógicos, de sua carnavalização do poder e sobretudo de seus atos autoritários (embora confirmados pelo voto popular).

Quando Chávez vai a Cuba e elogia os Castro, não está abraçando uma ditadura hereditária que não implantou em seu país. Ele sabe que Cuba não tem mais nenhuma importância no jogo de poder internacional, mas precisa saudar o velho símbolo do anti-americanismo, ficar do lado que provoca a fúria do lado de lá. O ódio às vezes pode ser uma moeda de troca nos negócios internacionais.

O regime chavista manteve no país uma inflação alta, quase dobrou o valor da dívida pública, criou condições para o aumento da violência urbana, pôs a Venezuela na dependência exclusiva do petróleo, tentou controlar a imprensa. Mas também quase triplicou seu PIB per capita, diminuiu a pobreza extrema de 20 para 7% da população, baixou a taxa de desemprego pela metade, não fez nenhum preso político. E não se tem notícia de corrupção, roubalheiras praticadas pelo líder do regime.

Nenhum caudilho populista, apenas inescrupuloso ou demente, se interessaria tanto por seu povo, sobretudo pelos mais pobres. Nem seria tão amado por ele, do jeito que Chávez foi.

No fundo, Hugo Chávez foi uma caricatura do que poderia ser a reação às evidentes frustrações causadas pela democracia representativa em nossos países, com seus Congressos de espertos e insensíveis legisladores, quase sempre corruptos, desinteressados da população. Em quase toda a América Latina, os Executivos nacionais têm merecido muito mais respeito do que seus Legislativos. E portanto mais poder.

Farto de tanta teoria sobre seu trabalho, Pablo Picasso disse um dia que "todo mundo fala em ‘compreender a pintura’, mas ninguém fala em ‘compreender o canto dos pássaros’". Foi a observação dos homens que fez o canto dos pássaros ser belo. Talvez tenhamos que desvencilhar a política de todas essas teorias ideológicas, para apreciar o que de verdade está por trás dela, em benefício da população.

*****

Há dez anos os cineastas brasileiros lutam pela criação do Vale Cultura, mecanismo público em que o trabalhador de carteira ganha o direito de gastar, sem custo para ele, 50 reais mensais em consumo cultural, indo ao cinema, ao teatro, à livraria, aos concertos que bem entender. O centro das políticas públicas para o setor passaria a ser o interesse do consumidor e não mais, como sempre foi, o do produtor.

Com a notícia de que a ministra Martha Suplicy está incluindo, nesse consumo incentivado, o direito de uso do Vale Cultura para a assinatura de televisão paga, nossos esforços de dez anos foram frustrados. Mais uma vez, acordamos de um sonho para a dura realidade em que os mais poderosos acabam sempre levando tudo, mesmo que não precisem de nada.

Em pouco tempo, a televisão paga no Brasil passou de 8 para as atuais 20 milhões de assinaturas. E só tende a crescer, como signo de mobilidade social e ascensão de classe. Um crescimento que, por enquanto, só favorece a produção audiovisual estrangeira, a maioria absoluta de sua programação.

No mundo inteiro, a televisão compensa seu poder tecnológico na oferta de consumo cultural sendo a principal fonte de financiamento de filmes. Isso acontece dos Estados Unidos à Ásia (incluindo a China), da Europa a grande parte da América Latina (como Chile e Argentina). Sendo o primeiro país do mundo em que o cinema vai ajudar a financiar a televisão, o Brasil será certamente objeto de gargalhadas nos próximos encontros internacionais do audiovisual.

Conhecendo o passado político de Martha Suplicy, temos esperança de que essa notícia seja um boato e que o Vale Cultura vá beneficiar apenas os produtores brasileiros de cinema, teatro, música, literatura, etc. Os que de fato precisam dele.

Chávez e as lições de Lula - ZUENIR VENTURA

O GLOBO - 09/03/2013

As cenas de histeria e culto à personalidade, de idolatria e fanatismo provocadas pela morte de Hugo Chávez lembram sentimentos experimentados aqui por ocasião do suicídio de Getúlio Vargas em 1954: o mesmo espanto e o mesmo medo de uma multidão enfurecida pela dor da perda do timoneiro e capaz de explodir numa convulsão social a qualquer momento e por qualquer coisa. As personalidades e o momento histórico são distintos, claro, mas há qualquer coisa em comum nessas duas figuras, que pertencem à fauna dos que na história mundial se especializaram em manipular a vontade de seus comandados - os "déspotas esclarecidos". Os dois tiveram como inimigos o "imperialismo americano", mas a forma de enfrentá-lo foi oposta. Hábil, Getúlio negociou e tirou vantagens do antagonismo, como fez para entrar na II Guerra ao lado dos Aliados. Já Chávez, impulsivo, preferiu o confronto, aliando-se a países como Irã, Síria, Líbia, Coreia do Norte, ou seja, o que Bush chamou de "Eixo do Mal".

A inspiração brasileira de Chávez, porém, não foi Getúlio, mas Lula, que teria funcionado como bombeiro para debelar as chamas do explosivo líder venezuelano. Segundo contou em uma entrevista, nove meses depois de deixar a prisão em 1994, por causa de uma tentativa de golpe, ele visitou Fidel Castro, que o aconselhou: "Se você quer fazer política, siga Lula. Esse é o homem" (ou "o cara", como diria mais tarde Barack Obama). Dois anos depois, Chávez encontrou-se pela primeira vez com o ainda não presidente do Brasil e não precisou de muito tempo para concluir: "Fidel tinha razão. Lula era o homem."

Não sei se ainda não é cedo para avaliar o quanto Hugo Chávez fez de mal e de bem à Venezuela e, principalmente, ao povo venezuelano. Uma parte de mim sempre rejeitou seus métodos salvacionistas, seu sebastianismo, sua vocação autoritária, seu apego ao poder, seu desprezo pela liberdade de expressão. A outra parte se sente desafiada a entender o fenômeno, que não se explica apenas pelo carisma do personagem. O sucesso responde também a uma necessidade ou anseio coletivo. Por isso é que, em meio às tentativas de explicação, a do ex-ministro Rubens Ricupero, sem maniqueísmo, talvez seja a mais esclarecedora. "Hugo Chávez", ele escreveu, "foi um dos primeiros a intuir que as periferias da América Latina não se sentiam representadas pelos partidos tradicionais". Sem entrar no mérito da representação, a hipótese pode ser usada também para ajudar a explicar a popularidade de seu mestre Lula junto às classes menos favorecidas.

Apenas os fatos; se possível, a verdade - Lúcia Guimarães

NOVA YORK - No começo da carreira de jornalista, depois de ter servido no Vietnã, o jovem Tracy Kidder recebeu a seguinte ordem do editor Richard Todd, na redação da veneranda revista Atlantic Monthly: "Você está proibido de ler John McPhee". Aos 68 anos, Kidder, um dos mais admirados representantes do gênero imprecisamente chamado de jornalismo literário, solta uma gargalhada quando se lembra do pito que levou. Ele atende o Estado em sua casa numa pequena cidade do Oeste de Massachusetts para falar do livro Good Prose, The Art of Nonfiction (Boa Prosa, A Arte da Não Ficção), que acaba de lançar em coautoria com seu antigo editor. Todd não tinha nada contra o grande escritor John McPhee, um dos pioneiros da não ficção criativa. Mas a paixão do seu protegido por McPhee estava contaminando seus textos. "Imitar é bom quando, no começo, você está tentando descobrir a própria voz", diz Kidder. "Mas a melhor maneira de encarar o temor da influência é ler livros que você realmente aprecia."

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De corpo presente, mas sem ser o foco - Lúcia Guimarães

Três anos e 4 meses numa favela indiana renderam à jornalista americana Katherine Boo um premiado livro, 'Em Busca de Um Final Feliz', exemplo vigoroso do que pode a escrita de não ficção comprometida com o outro

 

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Quatro datas fatídicas - Sérgio Augusto

Terça-feira fez 60 anos que uma hemorragia cerebral matou Sergei Prokofiev. Imagine a comoção popular provocada pela morte do grande compositor russo. Imagine a repercussão na imprensa local e o congestionamento de repórteres na Praça Vermelha, perto da qual Prokofiev passou seus últimos anos de vida. E fique imaginando, porque nada disso, à exceção da morte do compositor, aconteceu no dia 5 de março de 1953.

De fato houve em Moscou, naquele dia, muita agitação popular e jornalística em torno de um morto, só que o defunto não se chamava Sergei, mas Josef, nem compunha música, era um ditador, o soba de todas as Rússias. Quis o pérfido destino que Prokofiev entregasse a batuta justo no dia em que Stalin finalmente bateu as botas. A coincidência foi a última humilhação imposta pelo líder soviético ao compositor que tanto perseguira, chantageara e penalizara desde o final da década de 1930.

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A virose - Arnaldo Bloch


O que são essas viroses contemporâneas que, de tão banais, trazem em seu bojo toda a melancolia do tempo vivente e toda a carga da Grécia antiga?

Meu pescoço dói e inalo a mistura de salicilato de metila, cânfora, mentol e essência de terebintina que me levam a ouvir os sinos de outrora em ásperas e venenosas atualizações. Carnaval chinês. Rock episcopal. O mal. O remédio não vem em software. Não há posição confortável para a cabeça que repousa sobre travesseiros que um dia foram de penas de ganso e, hoje, não passam de foles sem vento e sem música. Esse é o meu leito. Vida e morte.


Mazurca fogo - José Miguel Wisnik


 O GLOBO 09/03/2012

 

A Polônia pulsa nas ‘Mazurcas’ de Chopin e no ‘Príncipe Roman’ de Joseph Conrad

Minha amiga Rachel Gutierrez me deu de presente as “Mazurcas” de Chopin tocadas por Antonio Guedes Barbosa. É uma gravação do selo Kuarup. Rachel, escritora e musicista que eu vim a conhecer graças a esta coluna, que ela acompanha à distância com comentários infalíveis, sabe que eu estou escrevendo um longo ensaio sobre Chopin e me municiou com vários toques sobre o assunto, sendo este o mais precioso e surpreendente. A interpretação do pianista paraibano, morto prematuramente em 1993, está com certeza ente as melhores que já foram feitas, em qualquer lugar do mundo, dessas peças vivazes e profundas, enigmáticas, inspiradas livremente na memória das danças populares polonesas da região que circunda Varsóvia.

A escuta me animou a levar adiante umas ideias que eu venho associando faz tempo. Há muitos anos um amigo me mandou um conto de Conrad chamado “Príncipe Roman”. Conrad, como sabemos, chamava-se Jan Korzeniowski, polonês de nascimento que saiu pelo mundo como marinheiro e que se tornou um dos maiores escritores em língua inglesa. “Principe Roman” é a história de um aristocrata polonês que rompe com o compromisso de sua classe e de sua família com o Czar, durante o longo período em que a Polônia ficou sob o domínio da Rússia, da Prússia e da Áustria, e que adere à luta antirrussa durante o fracassado levante de 1831 (o mesmo ano em que Chopin partia definitivamente da Polônia em direção a Paris). Ao se engajar como voluntário nas fileiras do exército resistente, esconde a sua condição de nobre, recusando os privilégios que pudessem resultar disso. Mais ainda, assume a identidade do camponês que o acompanhava como servo, quando este morre em combate, fazendo-se passar por ele até o fim da guerra, que o leva como prisioneiro para a Sibéria durante anos.

Fiquei convencido de que a história do príncipe camponês era uma fábula representativa da mitologia polonesa, mesmo que Conrad a tivesse extraído de acontecimentos contados por seu avô como verídicos. Imagino que num país de forte tradição feudal e camponesa, riscado do mapa durante todo o século XIX, a burguesia nacional não teve papel relevante a representar no imaginário nacional, ao contrário dessa conjunção de nobre e camponês lutando contra o dominador estrangeiro. Ano passado, vasculhando uma livraria no bairro polaco de Chicago, topei com uma biografia do herói nacional Tadeuz Kosciuszko, que liderou por sua vez o fracassado levante antirrusso de 1794. O livro se chama “The peasant prince”, o príncipe camponês, e como nada indica que seu autor tenha pensado no conto de Conrad quando escreveu o livro, este vinha como mais um indício confirmador da insistência do mito. Curiosamente, Kosciuszko participara também como voluntário, em 1776, das lutas pela independência norte-americana, nas quais fez-se reconhecer pelo mérito, em curiosa analogia com o personagem de Conrad, do qual talvez seja uma espécie de modelo. É sabido que Kosciuszko deixou a Thomas Jefferson um considerável legado em dinheiro, a que tinha direito, para libertar e educar escravos negros norte-americanos.

A aura do nobre camponês acompanha as refinadas e cintilantes “Mazurcas” de Chopin. Nietszche fala, a propósito dele, de uma “liberdade principesca” que consiste em dançar entre as cadeias da convenção como só o pode “o espírito mais livre e mais gracioso”. A definição combina com outra, a do aristocrata estetizado (aristocrata democrata “que alcança a nobreza por um processo de autoeducação”) capaz de deslizar “sobre o chão em que nós afundamos” graças a uma leveza conquistada e livre de esforço visível. É como Lorenzo Mammì fala de Fred Astaire, sem deixar de mencionar Chopin. E é essa fluida liberdade dançante toda feita de gestos sonoros da memória camponesa que nós ouvimos de maneira rara nas “Mazurcas” tocadas por Antonio Guedes Barbosa.
Enquanto isso, acaba de ser lançada a “Poesia toda” de Paulo Leminski, acontecimento auspicioso. No seu livro “Polonaises”, incorporado a essa poesia completa, ele traduzia um poema-fragmento de Adam Mickiewicz, contemporâneo de Chopin, que podemos ler no espírito das mazurcas ou dos prelúdios chopinianos: “Choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas,/ Na minha infância campestre, celeste,/ Na mocidade de alturas e loucuras,/ Na minha idade adulta, idade de desdita;/ Choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas...”.

Limpidez cintilante é o que eu ouvi ontem no show de Jussara Silveira no Sesc Anchieta, aqui em São Paulo, mazurca-fogo de canções brasileiras, angolanas e portuguesas, presentes respectivamente nos seus mais recentes CDs, o maravilhoso “Ame ou se mande”, “Flor bailarina” e “Água lusa”, este último a sair em breve.