PEC das domésticos mexe com hábitos muito arraigados na história da vida privada no Brasil
Todo mundo sabe, confesse-o ou não, que o estatuto precário dos empregados
domésticos na vida brasileira é uma das marcas escravistas resistentes em nosso
cotidiano. E que, por isso mesmo, a Proposta de Emenda Constitucional regulando
horas de trabalho, horas de descanso e pagamento de horas extras, que entrou em
vigor esta semana, é um marco prático e simbólico que estabelece um patamar
mínimo de civilidade no tratamento da questão. Outros direitos (fundo de
garantia por tempo de serviço, multa por demissão sem justa causa,
seguro-desemprego, creche e pré-escola, salário-família), que completariam a
inclusão desses trabalhadores na ordem regular do trabalho formal, esperam
regulamentação. Tudo isso mexe com um mercado de trabalho já em processo de
mudança, dado o sintomático decréscimo da oferta de mão de obra, e mexe com
hábitos muito arraigados na história da vida privada no Brasil.
A ambivalência dessa história também é conhecida. As relações interpessoais na
esfera doméstica, com suas tonalidades próximas e afetivas, são tradicionalmente
muito diferentes, no Brasil, das relações impessoais vigentes entre patrões e
empregados na Europa e nos Estados Unidos, onde o trabalho doméstico custa caro
e é raríssimo. A informalidade brasileira, que entranha muito da nossa
sociabilidade e muitas das nossas criações mais preciosas, é a mesma que dá
lugar às formas mais perversas do arbítrio, do privilégio, da exploração
insidiosa e da truculência. O Brasil é uma droga, no sentido positivo e negativo
do termo. É desejável que o melhor dessa informalidade seja capaz de se
transformar em algo mais alto, se a mais básica formalização emancipadora
começar a pôr ordem na casa.
Não posso deixar de pensar, junto com isso, e por mais estranho que pareça,
em Clarice Lispector. Por acaso estou relendo-a pela enésima vez, sempre com
prazer e renovado espanto, por causa de um curso que inventei de dar para isso
mesmo — para poder ler de novo seus livros. Ela é conhecida como uma escritora
que vai aos meandros mais sutis da subjetividade, mas a gente muitas vezes
esquece os caminhos que a levam a isso, e que são da percepção social mais
aguda.
A empregada doméstica está no vértice supremo da obra de Clarice, que é “A
paixão segundo G.H.”, publicado em 1964. Presente por ausência, mas uma ausência
que define tudo. Uma mulher independente, livre de laços familiares, que vive
numa cobertura em Copacabana, vai até o quarto da empregada — Janair — que
trabalhou em sua casa por seis meses, quarto ao qual ela nunca foi durante esse
tempo, e encontra, em vez do esperado pardieiro, um quadrilátero límpido em cuja
parede caiada se estampa um desenho riscado a carvão. Nesse mural cru, de
aparência quase rupestre, deixado por Janair, em que aparecem uma mulher e um
homem, nus, e um cachorro, a narradora se vê através dos olhos da outra, os
únicos olhos capazes de vê-la de um modo que não seja a projeção de si mesma
dada pelos membros de sua classe social. Começa ali a mais vertiginosa das
viagens à experiência da estranheza do outro absoluto como descoberta de si. Não
será despropositado dizer que, se Guimarães Rosa fez do jagunço o transporte
para o seu entendimento do enigma do Brasil e do sertão-mundo, em Clarice a
passagem, no caso dela secreta, para todos os enigmas, se faz através da
empregada doméstica.
Numa crônica encantadora, ou perturbadora, se quiserem, chamada “O chá”, ela
imagina uma cerimônia de reencontro com todas as empregadas que teve na vida.
“As que esqueci marcariam a ausência com uma cadeira vazia, assim como estão
dentro de mim. As outras, sentadas, de mãos cruzadas no colo. Mudas — até o
momento em que cada uma abrisse a boca e, rediviva, morta-viva, recitasse o que
eu me lembro. Quase um chá de senhoras, só que nesse não se falaria de
criadas”.
E “A menor mulher do mundo”? Um explorador francês descobre no mais remoto
coração da África a menor tribo de pigmeus, e, entre eles, a menor mulher adulta
do mundo, grávida e nua, medindo quarenta e cinco centímetros. A foto em tamanho
natural é estampada numa página dupla do Jornal do Brasil, onde fica exposta a
um rodízio de fantasias de classe média, entre as quais a de tê-la como
empregadinha uniformizada servindo a mesa. O conto reflete, entre outras coisas,
sobre o nosso desejo de posse, de deter o poder de ter alguém só para nós, sobre
a ferocidade com que queremos brincar de possuir alguém.
Clarice faz ver algo que o Brasil mal começa a aprender: que ter alguém a seu
serviço pessoal é um luxo a ser correspondido com todas as gratificações,
limites e formas da praxe. Mais que isso: que a existência, de si e do outro, é
o grande luxo.