O GLOBO 09/03/2012
A Polônia pulsa nas ‘Mazurcas’ de Chopin e no ‘Príncipe Roman’ de Joseph Conrad
Minha amiga Rachel Gutierrez me deu de presente as
“Mazurcas” de Chopin tocadas por Antonio Guedes Barbosa. É uma gravação
do selo Kuarup. Rachel, escritora e musicista que eu vim a conhecer
graças a esta coluna, que ela acompanha à distância com comentários
infalíveis, sabe que eu estou escrevendo um longo ensaio sobre Chopin e
me municiou com vários toques sobre o assunto, sendo este o mais
precioso e surpreendente. A interpretação do pianista paraibano, morto
prematuramente em 1993, está com certeza ente as melhores que já foram
feitas, em qualquer lugar do mundo, dessas peças vivazes e profundas,
enigmáticas, inspiradas livremente na memória das danças populares
polonesas da região que circunda Varsóvia.
A
escuta me animou a levar adiante umas ideias que eu venho associando faz
tempo. Há muitos anos um amigo me mandou um conto de Conrad chamado
“Príncipe Roman”. Conrad, como sabemos, chamava-se Jan Korzeniowski,
polonês de nascimento que saiu pelo mundo como marinheiro e que se
tornou um dos maiores escritores em língua inglesa. “Principe Roman” é a
história de um aristocrata polonês que rompe com o compromisso de sua
classe e de sua família com o Czar, durante o longo período em que a
Polônia ficou sob o domínio da Rússia, da Prússia e da Áustria, e que
adere à luta antirrussa durante o fracassado levante de 1831 (o mesmo
ano em que Chopin partia definitivamente da Polônia em direção a Paris).
Ao se engajar como voluntário nas fileiras do exército resistente,
esconde a sua condição de nobre, recusando os privilégios que pudessem
resultar disso. Mais ainda, assume a identidade do camponês que o
acompanhava como servo, quando este morre em combate, fazendo-se passar
por ele até o fim da guerra, que o leva como prisioneiro para a Sibéria
durante anos.
Fiquei convencido de que a história
do príncipe camponês era uma fábula representativa da mitologia
polonesa, mesmo que Conrad a tivesse extraído de acontecimentos contados
por seu avô como verídicos. Imagino que num país de forte tradição
feudal e camponesa, riscado do mapa durante todo o século XIX, a
burguesia nacional não teve papel relevante a representar no imaginário
nacional, ao contrário dessa conjunção de nobre e camponês lutando
contra o dominador estrangeiro. Ano passado, vasculhando uma livraria no
bairro polaco de Chicago, topei com uma biografia do herói nacional
Tadeuz Kosciuszko, que liderou por sua vez o fracassado levante
antirrusso de 1794. O livro se chama “The peasant prince”, o príncipe
camponês, e como nada indica que seu autor tenha pensado no conto de
Conrad quando escreveu o livro, este vinha como mais um indício
confirmador da insistência do mito. Curiosamente, Kosciuszko participara
também como voluntário, em 1776, das lutas pela independência
norte-americana, nas quais fez-se reconhecer pelo mérito, em curiosa
analogia com o personagem de Conrad, do qual talvez seja uma espécie de
modelo. É sabido que Kosciuszko deixou a Thomas Jefferson um
considerável legado em dinheiro, a que tinha direito, para libertar e
educar escravos negros norte-americanos.
A aura do
nobre camponês acompanha as refinadas e cintilantes “Mazurcas” de
Chopin. Nietszche fala, a propósito dele, de uma “liberdade principesca”
que consiste em dançar entre as cadeias da convenção como só o pode “o
espírito mais livre e mais gracioso”. A definição combina com outra, a
do aristocrata estetizado (aristocrata democrata “que alcança a nobreza
por um processo de autoeducação”) capaz de deslizar “sobre o chão em que
nós afundamos” graças a uma leveza conquistada e livre de esforço
visível. É como Lorenzo Mammì fala de Fred Astaire, sem deixar de
mencionar Chopin. E é essa fluida liberdade dançante toda feita de
gestos sonoros da memória camponesa que nós ouvimos de maneira rara nas
“Mazurcas” tocadas por Antonio Guedes Barbosa.
Enquanto
isso, acaba de ser lançada a “Poesia toda” de Paulo Leminski,
acontecimento auspicioso. No seu livro “Polonaises”, incorporado a essa
poesia completa, ele traduzia um poema-fragmento de Adam Mickiewicz,
contemporâneo de Chopin, que podemos ler no espírito das mazurcas ou dos
prelúdios chopinianos: “Choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas,/ Na
minha infância campestre, celeste,/ Na mocidade de alturas e loucuras,/
Na minha idade adulta, idade de desdita;/ Choveram-me lágrimas limpas,
ininterruptas...”.
Limpidez cintilante é o que eu
ouvi ontem no show de Jussara Silveira no Sesc Anchieta, aqui em São
Paulo, mazurca-fogo de canções brasileiras, angolanas e portuguesas,
presentes respectivamente nos seus mais recentes CDs, o maravilhoso “Ame
ou se mande”, “Flor bailarina” e “Água lusa”, este último a sair em
breve.
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