Estado de S.Paulo - 09/03/2013
Já contou quantas vezes desejou voltar ao passado em sonos perdidos, bebedeiras, ou sonos perdidos por causa de bebedeiras?
Para rever parentes, revisitar locais hoje degradados, sentir o
fedor de antigamente, saudades que se confundem com vontade de
reescrever a própria história, repensar em decisões, arrependimentos,
chance de vislumbrar como teria sido se aquilo ou aquele não
descarrilasse, dar mais importância a coisas que, por causa da
imaturidade e inexperiência, passaram batidas, e, quem sabe, refazer
histórias de amor que foram interrompidas porque não mandou aquela
carta, falou o que deveria ter guardado, se calou, telefonou na hora
errada, não insistiu quando desconfiavam da sua incerteza, passou do
limite, duvidou de quem era inocente, ouviu a razão, não o coração, ou o
contrário, fingiu não ver, ignorou sinais, não entendeu códigos,
mensagens, não acompanhou mudanças, alternâncias, não compactuou, não
emprestou o ombro, não parou para ouvir, não enxugou lágrimas, oscilou,
se omitiu, não assumiu, admitiu nem reprimiu, abraçou, nem escondeu
direito, presunçoso, pretensioso, precavido, não viu o que estava
desfocado.
Você voltaria mesmo ao passado?
Não tinham inventado Twitter, Face, Instagram. Redes sociais eram
redes compartilhadas em barcos que subiam o São Francisco e o Amazonas.
Esquece celular, GPS, código de barras, Google, ímã de geladeira,
post-it. Postar era enviar um cartão-postal com garranchos, resumido em
dois parágrafos à caneta a viagem para um amigo.
Seria bom rever cachos nas garotas, rugas nas coroas, acampar em
praias desertas e despoluídas, receber delivery na cozinha, não precisar
descer para pegar uma pizza. Mas como fotografar e postar a sobremesa,
marcar um evento com a rapaziada das antigas, conferir como a ex
engordou, e seu novo namorado não tem nada a ver com você, protestar
contra o presidente do Senado, a hidroelétrica, o massacre de índios,
checar a grafia correta da capital da Coreia do Norte e do seu líder
supremo?
Se hoje somos paparazzi de nós mesmos, como lidaríamos com a vida sem
exibição do nosso melhor perfil, panorama das nossas férias, e
narraríamos nossas preferências e indignações não para um, mas para
milhares?
Imagino que um sujeito de hoje se sentiria preso no anonimato de
ontem. E aflição pelo silêncio da sua voz, invisibilidade das suas
imagens e do registro da rotina. Sofreria por voltar à banalidade, ao
comum.
Até aos poucos voltar à paz da vida privada, depois de colocar a
Barsa herdada na ordem alfabética, ao lado do Guia de Ruas e Almanaque
Abril comprados na banca. Poderia então relaxar, escrever cartas, mandar
um romântico telegrama fonado pelo 135, marcar a hora de acordar pelo
serviço de despertador automático 134. Sem nenhuma pressa, tiraria a
poeira grudada no diamante da agulha do toca-discos e abriria um bom
livro, que cheiraria mofo e memória.
***
Voltar ao passado foi o plot de dois filmes, De Volta para o Futuro
(1985) e Peggy Sue – Seu Passado a Espera (1986), de dois cineastas da
mesma turma, Spielberg (como produtor) e Coppola, que abriram as gavetas
da reprimida nostalgia e revisitaram tempos de escola, para dar uma
pausa no pessimismo da Era Reagan, cuja doutrina, “a paz através da
força”, alimentou tensões na Guerra Fria, e na expansão e intolerância
do fundamentalismo religioso, desordem ambiental, avanço da cocaína e,
por fim, surgimento da aids como punição a uma geração acusada de
“desvairada”.
Eles homenagearam, entre outras coisas, o próprio cinema, já que as
salas se transformavam em pulgueiros para o exercício do onanismo, culpa
do novo satã, a televisão, retratada como o primeiro degrau do inferno
em Poltergeist – O Fenômeno, também produzido por Spielberg, e
Videodrome, de Cronenberg.
Peggy Sue (Kathleen Turner), de 43 anos, recém-separada, desmaia
durante a festinha de 1985 de confraternização da escola. Acorda em
1960, quando começava a namorar o futuro marido Charlie Bodell (Nicolas
Cage). De mão beijada, a oportunidade de remover o calo que sempre
atrapalhou a relação: a frustração dele por não ter virado estrela do
rock.
Peggy mata as saudades dos avós, transa com o poeta beat da escola,
sugere a um nerd o investimento em roupas de ginástica e convence o
namorado a desistir do estilo musical – quarteto vocal de soul –, cuja
invasão inglesa iminente iria golpear.
Em De Volta para o Futuro, que não sei por que não se chama De Volta
ao Presente, ou Volta ao Passado, você se lembra: Marty McFly (Michael
J. Fox), skatista que, em 1985, é amigo de Dr. Brown, cientista maluco,
volta ao passado numa máquina do tempo, um DMC-12 fabricado na Irlanda
do Norte pela DeLorean Motor Company e que ficou famoso por causa do
filme. Reencontra a mãe, Lorraine, em 1955, às vésperas do baile em que
ela beijou a vítima de bullying, George, o pai.
O problema é que, num dilema freudiano, o filho passa a ser objeto de
desejo da mãe, que o chama de Calvin por causa da marca Calvin Klein
bordada na sua cueca – num tempo em que as pessoas bordavam o nome nas
roupas, ou melhor, as avós das pessoas –, considerado o merchandising
mais bem bolado da época.
Algumas piadas ficaram eternizadas. Como quando Marty pede uma Pepsi
Diet, e o balconista diz que não é médico, então corrige e pede uma
Pepsi Free. “Você quer beber um refrigerante e não pagar?”. Ou quando
diz vir do tempo em que Ronald Reagan é presidente. “Jerry Lewis é o
vice?”, escuta.
McFly inventa o skate e o rock. Ele e Peggy Sue voltaram ao passado
acidentalmente. Aproveitaram para mexer pauzinhos e corrigir deslizes
amorosos que repercutiriam no futuro (presente). Tentaram reascender a
chama do amor que apagava.
Para os dois, ele não acaba por si. Acabamos com ele, induzidos por
elementos que contaminam a sua pureza. O marido de Peggy pôde viver sem o
trauma de ter o sonho juvenil frustrado. O pai de McFly deixou de ser
um “looser” por ter reagido ao bullying no passado. E sua mãe continuou
magra. Não encontrou no copo de uísque o ouvido que faltara.
***
Rolou uma controvérsia sobre a data do futuro que Dr. Brown visitou
no final do filme, que sugere o nome De Volta para o Futuro. Ele viaja
para 21 de outubro de 2015 e volta. Ao invés do plutônio, o combustível
do DeLorean passou a ser lixo orgânico. Aparece daqui a dois anos.
Atravessará a barreira do tempo graças ao, quem diria, biocombustível.
Vai bombar no Twitter.
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