sábado, 19 de abril de 2014

Noll em viagem - José Castello

O Globo - 19/04/2014

Poucos livros que conheço retratam com tanta dramaticidade o nascimento da literatura quanto “Lorde”, romance que João Gilberto Noll publicou em 2004 pela editora Francis, ganhou o prêmio Jabuti em 2005, e agora é relançado pela Record. O romance ilustra também a nova figura do escritor como um eterno viajante que, sufocado por uma multiplicidade de destinos, muitas vezes já nem sabe mesmo onde está, ou por que viaja.

“Lorde” conta na primeira pessoa a história de um escritor brasileiro que chega a Londres a convite de um cidadão inglês desconhecido. Não são claros os objetivos da viagem — mas ele supõe que incluam uma agenda literária. A chegada já lhe traz a intuição constante do fracasso: “algo me dizia que ele iria faltar”. A partir dali, o escritor se aventura não em uma zona de conhecimento, mas de desconhecimento. Região turva e sem direção, ambiente inóspito no qual a literatura também nasce.

O personagem de Noll — como um escritor qualquer diante de sua folha em branco — nunca sabe o que o aguarda. Espera-o uma tarefa secreta, que parece estar além de suas forças, mas a qual, ainda assim, ele precisa cumprir, ou tentar cumprir. Esse esforço dá nascimento ao livro, que nada mais é do que o resto inesperado de uma busca cega. Sente-se pressionado, “tendo eu que me preparar para uma tarefa que poderia me exigir muito além do que eu poderia oferecer”. O escritor está sempre aquém do livro que imagina. Seus dotes são insuficientes. Seus recursos não bastam para dar conta da tarefa a que se propõe. E, no entanto, é assim, nessa zona de penúria, e “sem condições”, que ele deve escrever.

Também a viagem a Londres, que antes prometia algum tipo de consagração, só lhe devolve a mesma solidão em que já vivia no Brasil. Troca uma solidão por outra. Enfim, o anfitrião inglês resolve lhe mostrar a capital britânica. “Ele sabia o que eu mesmo já não sabia mais”. Às cegas, o escritor se entrega a um ritual de sagração que é também a chegada a um exílio. Quando entram no apartamento que lhe reservaram, o escritor se dá conta de que lhe falta um espelho. Sua identidade começa a se esfacelar. “Ah, eu estava na cidade de Churchill e seu charuto, murmurei, não deveria esquecer, deveria fazer algum exercício para a memória”. Mas quanto mais convoca sua ajuda, mais ela lhe falha. A literatura nasce assim: de um lugar desconhecido, com propósitos não controláveis e intenções obscuras. O escritor acha que caminha numa direção, quando caminha em outra.

Tateia — como o personagem em Londres — em busca de algo que não consegue pegar. “Não que eu fosse um idiota completo, de nada lembrasse”. Mas a verdade é que a vida começa a lhe faltar, e é aí que a escrita encontra um lugar para se estabelecer, um vão para nascer como um rascunho da verdade. Ronda pelo bairro da periferia em que se hospeda, continua sua busca de um espelho, mas tropeça em migrantes e se embrenha numa atmosfera turva.

“Queria me ver depois da viagem, ver se eu ainda era o mesmo”. Quando enfim pode se reconhecer, se desconhece: “Eu era um senhor velho. Antes não havia dúvida de que eu já tinha alguma idade. Mas agora já não me reconhecia, de tantos anos passados”.

A partir dessa ignorância de si, o escritor se embrenha em um turbilhão de acontecimentos cada vez mais bizarros. Segue em busca de uma identidade que teima em lhe escapar e, por fim, se dá conta de que é um dândi — um “lorde” — perdido em um mundo estrangeiro.

Passa a desconfiar que, em Londres, “já é outro”, mas não consegue nomear esse outro em que se transformou.

“Ah, eu me enganava de novo, o fato é que eu perdia a direção”, constata. Condição primeira da escrita, essa perda de direção.

Este vazio é a possibilidade de acolhimento de uma prosa que o preencha. Busca “uma precária garantia de que não cairia na sarjeta”, mas não existe garantia alguma. Tudo o que lhe resta é seguir em frente. Assim também caminha o escritor enquanto escreve: sem fiança, sem confiança, sem nada que o permita existir com leveza.

A entrada no mundo da ficção que a aventura do protagonista metaforiza é experimentada como um susto. “Ele sabia o que eu mesmo já não sabia mais”, diz o personagem de Noll, sublinhando a importância da ignorância na experiência literária. “Tudo o que eu vivera até ali parecia estar indo embora. Parecia só existir aquilo, uma casa desconhecida que teria de ocupar, uma língua nova”. Nesse mundo de sombras e de frágeis silhuetas, ele conclui que “é preciso saber olhar”.

Reaprender a olhar, e também se desapegar das ideias iniciais, rascunhos, projetos gloriosos que, diante do texto, se dissolvem. “Eu não tinha saudade do que deixara no Brasil nem de nada em qualquer esfera”, diz.

Aos poucos, o personagem original se decompõe, se fragmenta, abrindo caminho para outro homem, que ele mesmo desconhece. “Tinha vindo para Londres para ser vários”, conclui diante do cenário em fragmentos pelo qual transita. Tornando-se outro, ele se transforma em objeto. Objeto de que? Da ficção, que avança sobre o terreno e ocupa os espaços. A própria linguagem, ele experimenta, está em decomposição. Já não há nada conhecido, e todas as garantias estão desfeitas. “Eu tinha vindo nesse raio de mundo para isso, para preencher esse intervalo que na verdade não tinha fim”. Abre-se um abismo, e esse abismo é a própria ficção.

A aventura do personagem de Noll torna-se, a partir daí, insuportável, chegando a beirar o absurdo. É, enfim, uma travessia do desconhecido que, se abre uma rachadura no mundo estável, abre também um lugar para um novo mundo. “Só poderia então desejar que aquele impasse perdurasse pelo resto dos dias”, medita. O impasse é sua salvação. É diante da realidade insolúvel que ele pode, enfim, por falta de alternativa, criar. A criação se torna assim um destino, e não um ponto de partida. Uma meta, e não uma escolha.

Por fim, um erotismo forte toma conta de “Lorde”, como que a indicar que tudo se resolve no corpo ou em seu entorno. Que é na carne que as piores, mas também as melhores coisas se desvelam. É ali, chegando a si mesmo, que o homem enfim se constitui.

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