sábado, 19 de abril de 2014

| Não te leves demasiado a sério, mas leva a sério o mundo - GONÇALO M. TAVARES

 O Globo 19/04/2014

CORRER E EXISTIR

“Um grupo de pessoas andava a passear e encontrou Nasreddin Hodja. Perguntaram-lhe:

— Quanto tempo levamos até à aldeia mais próxima?

— Andem — disse-lhes ele.

— Mas quanto tempo?

— Andem.

Não conseguiram arrancar-lhe mais nada além desse “andem” e deixaram-no ali.

Meia hora mais tarde chegaram à aldeia seguinte.

Ouviram atrás de si barulho de passos precipitados. Voltaram-se e viram Nasreddin que chegava a correr.

Sem fôlego, parou junto do grupo e disselhes:

— Demora uma meia hora.

— Mas porque não nos disse antes?

— Porque — respondeu Nasreddin — não sabia a que velocidade caminhavam.”

(História recolhida por Jean-Claude Carrière)

O HINO, A BANDEIRA

O hino e a bandeira, a bandeira e o hino.

A bandeira, qualquer bandeira, parecendo,

ao longe, um quadro mole em que as cores representariam uma espécie de outra paisagem, não exterior.

A bandeira de um país não é, de fato, um quadro realista, mas sim simbólico. O mais simbólico.

E sim. Se queres saber se há muito ou pouco vento fixa os olhos na bandeira, nos movimentos que ela faz — “as bandeiras são o vento tornado visível (…) os povos servem-se das bandeiras a fim de chamar seu o ar que paira sobre as suas cabeças”, escreve Elias Canetti. Eis, pois, o que representa a bandeira de um país que é levantada num estádio após uma vitória desportiva: subitamente, aquele bocado de ar fica com as nossas cores. Um retângulo de ar que é ocupado por uma bandeira. Parece pouco, mas é isso mesmo: o espaço aéreo de um outro país está ocupado pelo nosso país (um retângulo pequeno, a bandeira, sim, mas ocupa muito espaço mental porque, durante um minuto, é o centro — aquilo para onde todos olham).

E há ainda o hino, que não é nada irrelevante. Entre bilhões de associações de sons possíveis eis que surge a canção que reconhecemos.

E assim estamos, nesta cerimônia simples, na coroação de um vencedor olímpico, diante da ocupação temporária de olhos e ouvidos dos outros. Os olhos veem a bandeira, os ouvidos ouvem o hino. E esta ocupação temporária de olhos e ouvidos — os órgãos essenciais da atenção humana — é significativa. Invasão pacífica portanto: em vez de um exército a entrar em território alheio, ocupação — durante um minuto — dos olhos e ouvidos alheios. Olhos e ouvidos dinamarqueses, chineses, australianos (etc.) a verem e ouvirem a bandeira e o hino de um outro país. Pacífica ocupação visual e sonora do espaço aéreo estrangeiro por um minuto. É tempo suficiente? Sim.

1 - CORRIDA EM LINHA RETA VERSUS CORRIDA EM CÍRCULOS

Há dois tipos de corrida, isto é: duas formas de percorrer o espaço:

1 - Corrida em linha reta.

2 - Corrida em circunferência ou noutra forma “curva”, em que o ponto final é o mesmo do início.

E se viver for percorrer um espaço? Aqui está uma pergunta. Não é isso? Então o que é? É percorrer um tempo, resposta possível. Correr sobre um tempo, é isso? Mas como se corre sobre o tempo? É difícil pensá-lo a grande escala, mas uma corrida, a maratona por exemplo, é isso mesmo: é correr por cima do tempo, correr por cima do relógio, do cronômetro. O chão deixa de ser informe e neutro e passa a ser Tempo, tempo objetivo. Numa corrida percebemos então o que significa ainda não estar morto: é ter tempo a correr debaixo dos pés. E eis, pois, que correr muito, andar pouco ou ficar quieto ganham novos sentidos. É impossível correr mais rápido do que o tempo, por definição — mas podes correr ao mesmo ritmo do tempo, correr menos que o tempo, ou não correr, simplesmente. Neste sentido, duas formas de corrida são duas formas de existir sobre a terra. Duas formas completamente distintas. Resistência ou velocidade? Chegar rapidamente ao destino ou, no limite: avançar sempre, sem parar, tentando apenas não cair. As provas de atletismo resumem duas formas de estar vivo.

1A - Corrida em linha reta

Correr em linha reta: chegar o mais rápido possível a um ponto que está afastado — muito ou pouco — do ponto de partida.

— Corrida em linha reta curta — exemplo: corrida de cem metros.

— Corrida em linha reta longa — corrida de longo curso que não termina no ponto de partida (exemplo: atravessar uma cidade de um lado ao outro).

Qualquer que seja a distância, a verdade é que a corrida em linha reta esquece de onde partiu e só quer chegar ao destino. Aqui, então, o ponto de partida é isto mesmo: aquilo a que rapidamente se vira as costas. Esta indiferença em relação à origem, ao início, este não dar importância ao que está atrás de nós, deve merecer reflexão. Porque tal pode ser entendido como uma espécie de falta de memória. De onde parti, onde comecei? Eis aquilo de que j não me lembro e que já não importa nas corridas em linha reta. A corrida em linha reta — como nos 100 ou 200 metros — lembra até
uma fuga; tem, podemos dizer, o mesmo sistema mental da fuga (afastar-me o mais rápido possível do ponto onde estou!). Ao contrário, a longa corrida, como os dez mil metros, é para homens mais tranquilos.
Expliquemos porquê.

1B - Corridas em que se volta ao ponto de partida (circunferências mais ou menos imperfeitas)

Pois há então que dizê-lo: as corridas em circunferência (mesmo que muito imperfeita) são as mais sensatas. Façamos, então, um pequeno desvio e falemos de filosofia.

O filósofo Heidegger chamava a atenção para o que é filosofar: filosofar é andar em círculos, um itinerário longo, infinito, que regressa sempre ao ponto de onde partiu. Pois bem, explica ele, a filosofia anda em círculos porque está sempre à volta do centro. Ou seja, porqueestá sempre em redor do essencial. A filosofia, poderia dizer-se, traça uma circunferência cujo centro são os grandes temas humanos, ao contrário, por exemplo, de muitas ciências que avançam em linha reta — sempre em frente! Estas ciências, como é evidente, não têm centro porque uma linha reta, por definição, não tem centro.

E note-se que o essencial é aquilo para onde eu estou virado (nunca se vira as costas ao essencial); e, se é assim, em termos geométricos o centro de uma circunferência é o elemento para onde todos os pontos da linha da circunferência estão virados. Uma adoração sem Deus no centro.

Há, assim, uma diferença básica entre uma modalidade de atletismo como a corrida de cem metros, e uma modalidade como os 400 ou os 10 mil metros. Nestas modalidades, mesmo que não se trace uma circunferência, meta e partida estão no mesmo lugar. E esta característica é essencial.

São modalidades atlético-filosóficas, poderíamos dizer. Ao contrário dos 100 e 200 metros que são, continuando nesta lógica classificativa, modalidades atlético-científicas — (modalidades que têm o sistema mental da ciência: sempre em frente, é o caminho!). O atleta de dez mil metros nunca se afasta do centro — está sempre às voltas do essencial — mesmo que, por momentos, pareça afastar-se. E, além disso, corre muito, corre o mais rápido possível para chegar ao ponto de onde partiu. Parece um absurdo, mas é mesmo assim.
Do outro lado estão os velocistas.

2 – A CALMA DO ATLETA

De que é feita a calma? Disto: nada de espiritual ou psicológico — há que contar pelos dedos as pulsações cardíacas, eis tudo. A calma como um ritmo fisiológico — os metros por segundo que o sangue de um corpo percorre.

E as experiências individuais — correr a maratona, subir os Alpes, ver um filme, participar numa batalha — no fim, feitas as contas, não são o que sucede no exterior, são, sim, objetivamente, as pulsações cardíacas. Experiência individual não é o que se passa em frente ao corpo — é a consequência interna, no organismo, dos acontecimentos exteriores. Diante do mesmo acontecimento, duas pessoas têm reações orgânicas completamente distintas — um treme e grita, outro fica indiferente. Um tem 45 pulsações cardíacas, outro, cento e trinta. A experiência significativa é, então, aquela que altera brutalmente as pulsações cardíacas. Eis uma definição objetiva, quantitativa, neutra — mas definição.

(No entanto, se a aplicássemos em todas as situações, reduziríamos a vida pessoal a um gráfico de pulsações cardíacas. Em vez de um álbum de fotografias com os Alpes, Veneza e a mulher por quem nos apaixonamos, um gráfico de batimentos cardíacos por minuto. Aqui — dirá o dedo entusiasmado apontando para um número — aqui, quando me apaixonei: cento e vinte pulsações!)

Pois sim. A antiga definição de sabedoria poderia ser, afinal, uma mera constância nos batimentos cardíacos por minuto. O sábio como aquele que não se exalta, não se enerva. O sábio, no fundo, como um super-atleta, o atleta mais bem treinado para a Existência. A Existência entendida aqui como prova não Olímpica, mas prova, mesmo — exige esforço, força, velocidade, flexibilidade e capacidade de resistência.

(Texto que partiu de um texto-homenagem a Carlos Lopes, maratonista português que ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos)

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