sábado, 7 de dezembro de 2013

A espada e a paz - João Paulo

A espada e a paz

Livro sobre a dimensão histórica de Jesus, Zelota, do historiador iraniano Reza Aslan, defende a raiz política da mensagem do nazareno. Obra vem causando polêmica em todo o mundo

João Paulo

Estado de Minas: 07/12/2013
 
Cristo Redentor, no Rio de Janeiro: uma das imagens mais conhecidas do maior revolucionário de todos os tempos   (Yasuyoshi Chiba/AFP)
Cristo Redentor, no Rio de Janeiro: uma das imagens mais conhecidas do maior revolucionário de todos os tempos

Jesus não é um só. Há o Jesus de Nazaré, homem pobre, trabalhador braçal, com todas as marcas de seu tempo, identificado com correntes contestadoras do domínio romano na Palestina: um ser político, de tendências revolucionárias, defensor da fé judaica. E há também Jesus, o Cristo, que depois de sua morte foi chamado de o “filho de Deus”, que está na base de uma nova religiosidade e fundou uma linhagem espiritual. Um Jesus da espada; um Jesus da paz.

Passados mais de 2 mil anos, o primeiro Jesus, um entre muitos messias que lutaram contra Roma e morreram na cruz, se tornou apenas uma sombra, o grande mestre do cristianismo, que tem sua obra descolada das origens políticas para dar relevo à mensagem de natureza religiosa e universal. O Jesus histórico é principalmente um judeu, com as paixões e contradições de seu tempo. O Cristo que emerge dos evangelhos é um mestre espiritual pacífico, que foi afastado de seu nacionalismo judaico para ser identificado com questões que não são deste mundo. Um Jesus que os romanos podiam aceitar sem temor de vingança pelo massacre de Jerusalém.

Um Jesus da política e um Jesus da fé.

Essa é a tese central do livro Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan, livro que vem causando polêmica. A explicação do desconforto e reação iracunda de alguns leitores é, mais uma vez, política: Reza Aslan é iraniano e muçulmano. Depois de bate-bocas em programas de televisão nos Estados Unidos e rejeição por parte de críticos católicos, o autor se viu em meio a situações de preconceito que envolvem os temas ligados à sua origem e fé. Pareceu, a seus críticos, que Reza Aslan escreveu seu livro para atacar o cristianismo e enxergar nele uma matriz revolucionária que mistura política e religião, o que seria característica de sua interpretação da história. Afinal, com alguma honestidade, os muçulmanos sabem que história e religião não se separam.

Mas Reza, que foi cristão na juventude e mora em Nova York, é um especialista em história das religiões, formado em Harvard e autor de obras importantes sobre o tema. Seu livro não é um ataque a Jesus, muito menos sofre de excesso de interpretação baseado em poucos fatos. Ao contrário, trata-se de um livro de história, erudito e extremamente legível, sustentado por ampla bibliografia. Cada capítulo ganha, ao final do trabalho, um verdadeiro ensaio bibliográfico atualizado, que sustenta as afirmações e interpretações do autor.

A busca da pluralidade de fontes se justifica. Sabemos muito pouco sobre o Jesus histórico a partir de depoimentos de seus contemporâneos. Os primeiros testemunhos escritos sobre Jesus de Nazaré vêm das epístolas de Paulo, escritas pelo menos 20 anos depois da morte de Jesus. Em seguida vêm os evangelhos, que, com exceção de Lucas, nem sequer foram escritos pela pessoa que os nomeia (um caso típico de obras pseudoepigráficas, comuns no mundo antigo) e datam de décadas depois da morte de Jesus. Em outras palavras, os evangelhos não foram escritos por testemunhas oculares da palavras e ações de seu personagem central: são obras de uma comunidade de fé. Não são fato, são reconstruções teológicas. Ou seja, eles nos dizem sobre Jesus, o Cristo, mas nada esclarecem sobre Jesus, o homem.

Reza Aslan mostra como foram escritos os evangelhos canônicos (Marcos, Mateus, Lucas e João), expõe suas contradições, esclarece sobre as fontes (entre elas o Q), além de revelar a origem de uma verdadeira biblioteca de escritores não canônicos, sobretudo a partir do século 2, que apresentam novas perspectivas sobre a vida de Jesus de Nazaré. Mas é ao agregar outras fontes – sobre a história de Jerusalém, a religião judaica e o Império Romano – que o autor dá a dimensão de seu projeto. O que seu livro revela é uma história dos primeiros séculos, tendo Jesus como foco. De certa forma, pode-se ler Zelota como uma biografia política de Jesus e seu tempo. Mais ainda: uma investigação sobre os motivos que levaram com que o Jesus histórico fosse substituído pelo Cristo.

Quarta filosofia O título do livro já uma pista. Zelota vem de zelo, uma inspiração para movimentos típicos dos judeus contrários ao domínio romano na região. Espécie de quarta filosofia – ao lado dos filisteus, saduceus e essênios –, os zelotas compunham um partido que tinha com compromisso inabalável com a libertação de Israel do jugo romano e com a afirmação do Deus único dos judeus. Zelo: era isso que reivindicavam para si, um cumprimento rigoroso da Torá e a recusa a servir a qualquer outro mestre. Ser zeloso era, desta forma, seguir as pegadas dos heróis do passado.

No entanto, o que era heroísmo para os judeus era crime para os romanos. O autor vai mostrar como se dava essa difícil convivência, com o domínio político na mão de Roma e o comando religioso a cargo do sacerdote do templo. A descrição do Templo de Jerusalém é impressionante, com sua movimentação humana, superstições, jogos de poder, fé e até centro de negócios, como um verdadeiro banco a fazer circular o dinheiro de várias regiões. O templo era ainda espaço de negociação entre o ocupante e povo subjugado, preso ainda aos pesados impostos devidos a Roma.

Eram comuns os profetas que se insurgiam contra esta ordem. Considerados messias (a categoria abrangia centenas de pessoas dispostas a anunciar o fim do domínio romano e conclamar à revolta), esses homens eram heróis para seu povo, mas bandidos para Roma. Eram geralmente presos, torturados e mortos de forma violenta, decapitados ou crucificados. Jesus foi um desses messias. Como explica Aslan, a placa na cruz de Jesus, com os dizeres “Rei dos judeus”, não era um sarcasmo, mas uma sinalização do crime pelo qual estava sendo crucificado. O crime de Jesus foi buscar o poder político. Possivelmente, o mesmo crime do “bom” e do “mau” ladrão mortos a seu lado. Ladrão talvez seja uma tradução para a palavra grega lestai, que significa bandido, a mesma designação dada ao insurrecto Jesus.

Zelota é rico em informações. O autor leva para o contexto original situações que hoje fazem parte de uma rica mitologia, como a profissão de Jesus, suas origens familiares, o local de seu nascimento, os milagres, a relação com João Batista, o poder de Herodes, o nascimento virginal, a escolha dos apóstolos, as discípulas, o debate de Jesus com os rabinos, a expulsão dos comerciantes do templo etc. Algumas palavras atribuídas a Jesus, como as proferidas acerca do poder de César (“a César o que é de César, a Deus o que é de Deus’’) ganham novo significado: deixam de ser um reconhecimento da separação entre matéria e espírito para se afirmar como cobrança da devolução da terra ocupada aos judeus, seus legítimos donos por determinação de Deus a seus filhos diletos. O que soava como universal era na realidade uma defesa particular da herança de um povo em sua aliança com o criador.

Por que o Jesus que nos legou a tradição surge separado de seu povo e de suas reivindicações políticas, tão claras quando se examina a história separada das envoltórias da fé? Para Reza Aslan, depois de combater por décadas as insurreições, o governo central de Roma envia tropas que dizimam o templo e escravizam o povo, massacrando tudo que encontraram pelo caminho. Uma devastação completa, que destrói Jerusalém e expulsa seu povo da terra de seus antepassados. A partir do ano 70 d.C., exilados da terra prometida por seu Deus, os judeus passam a viver como párias e entre pagãos do Império Romano.

Uma operação levada adiante pelos rabinos, a partir do século 2, vai criar um divórcio entre o judaísmo nacionalista messiânico (que levou à destruição de Jerusalém) e a fé judaica, que se volta para dentro, na tradição do judaísmo rabínico. O livro substitui o templo. Outro movimento vai atingir os cristãos, que para também se separar da identificação revolucionária de sua origem, e com o objetivo de afastar a violência do poder romano, passam a transformar Jesus de um judeu revolucionário em um líder espiritual pacífico. O que era interesse político e terreno passa a ser causa espiritual e salvação para uma outra vida. Algumas décadas depois da morte de Jesus, os seguidores não judeus de Cristo eram muito mais numerosos que os seguidores judeus. Em um século, a ligação entre judaísmo e cristianismo desapareceu.

Zelota busca a recuperação do Jesus histórico. Para isso, com as armas da pesquisa e da interpretação, questiona superstições, limpa floreios literários, faz a genealogia de textos e dá a real dimensão ao que é fato histórico e o que é teologia e mito. Pode parecer uma empresa questionável, já que o Jesus da fé venceu e se tornou hoje a realidade para centenas de milhões de pessoas. Mas a história não precisa de outra justificativa que não a busca da verdade.

Jesus foi um líder revolucionário – talvez o maior de todos os tempos – e um líder espiritual, ao mesmo tempo. Os dois universos não se separavam. Que o Jesus histórico, judeu, zelota e revolucionário, em sua luta permanente contra as injustiças, surja rico de significação humana é um alento a mais para quem tem fé em Jesus, o Cristo. E um exemplo a ser seguido pelos que não creem, mas querem um mundo melhor ainda nesta vida.
 (Editora Record/Reprodução)

Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré
• De Reza Aslan
• Editora Record
• 304 páginas, R$ 36,90

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