quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Nem na ditadura...

O Globo - 17/10/2013

DIEGO WERNECK ARGUELHES E
IVAR A. HARTMANN


Nem mesmo naquela época se ousou restringir a tal ponto a liberdade de expressão cultural

Reunidos na organização Procure Saber,
importantes nomes da nossa música
defendem que se continue a proibir biografias
não autorizadas. Hoje, a proibição
resulta de uma interpretação precária do
art. 20 do Código Civil. Um dos argumentos desses
músicos é que não se pode permitir que
apenas o autor tire vantagem financeira da biografia.
Ou ambos lucram, ou o autor não pode
comercializar a obra. Mas essa interpretação da
lei traz risco enorme à cultura brasileira. Mais
diretamente, aliás, afetaria os próprios músicos
que a defendem.

O artigo 20 fala de “escritos”, mas não só. Inclui
“transmissão da palavra”, “publicação”, “exposição”
e “utilização da imagem”. Se o Código proíbe
alguma coisa, essa proibição não se aplica somente
a biografias. Um discurso — a transmissão da
palavra ao vivo. Uma matéria de jornal — publicação.
Uma homenagem a alguém — utilização da
imagem. Quem invoca o art.20 precisaria também
estar disposto a aplicá-lo aos muitos outros tipos
de expressão que ele abrange.

Músicas gravadas e tornadas públicas por meio
físico ou virtual preenchem todos os requisitos do
artigo 20. São “transmissão da palavra”. São “publicações”.
Mais ainda, músicas sobre pessoas reais
e específicas são uma exposição da pessoa e
utilizam sua imagem. Com “Fio Maravilha”, por
exemplo, Jorge Ben Jor expôs e divulgou (e imortalizou)
o jogador do Flamengo. E o próprio Caetano
construiu o cenário de sua “Sampa” com as
imagens de outros artistas de carne e osso, como
Rita Lee e os Novos Baianos.

Para a Procure Saber, não seria justo que “só os
biógrafos e seus editores lucrem com isso e nunca
o biografado ou seus herdeiros”. Para evitar essa
injustiça, portanto, deveríamos exigir sempre a
autorização prévia da pessoa retratada naquela
expressão artística, cultural, literária ou musical.
Ou de seus herdeiros. Mas onde isso nos levaria se
o artigo 20 fosse aplicado de forma coerente a todas
as formas de expressão? Caso sua mãe já houvesse
falecido quando compôs a tocante “Lady
Laura”, Roberto Carlos precisaria pedir autorização
de seus irmãos. A “Sampa” de Caetano só poderia
ser povoada por personagens que consentissem
em ser retratados.

No auge da ditadura militar, nos anos 70, Jorge
Ben Jor sofreu um processo judicial por não ter
pedido autorização do jogador Fio Maravilha
antes de lançar a sua famosa música. O pedido
foi rechaçado. Nem mesmo naquela época se
ousou restringir a tal ponto a liberdade de expressão
cultural.

Pelo que exigem agora alguns músicos brasileiros,
deveríamos ter obrigado Raul Seixas a
conseguir autorização dos herdeiros de Al Capone.
Ou exigido que o grupo Los Hermanos fizesse
primeiro um contrato de partilha do lucro
dos direitos autorais com a estudante retratada
em “Anna Julia”. E o que dizer da música “Clint
Eastwood”, do grupo Gorillaz? Seria necessária
a autorização do ator americano para divulgar a
música no Brasil?

Os músicos do Procure Saber deixaram claro
que, pelo artigo 20, opõem-se a manifestações
culturais não autorizadas apenas quando são
comercializadas. Se divulgadas gratuitamente,
não haveria problema. Mas a proibição do artigo
20 é mais insaciável do que pensam. Ela não
tem fundo. Estariam dispostos a abrir mão dos
direitos autorais de todas as suas músicas que
envolvam a imagem de uma pessoa real?

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