O Estado de S.Paulo - 03/05/2013
Gênio da música nordestina luta pela vida em meio a drama familiar
Julio Maria
Os dedos de Seu Domingos se movem lentamente. Há
meses estavam duros, em nada parecidos com aqueles que a diva do jazz
Sara Vaughan beijou depois de vê-los incendiar as teclas de uma sanfona
no Free Jazz Festival de 1987. Nem de longe os mesmos que Luiz Gonzaga
nomeou herdeiros legítimos de seu reinado.
Ao sentir a mão da mulher Guadalupe tocar a sua,
Dominguinhos a aperta forte. Sua reação mais comovente depois de oito
enfartes, 23 minutos sem oxigenação no cérebro, uma traqueostomia, dois
meses na UTI e desavenças familiares sobre seu próprio leito até
parece milagre. A luta de Dominguinhos não é só pela própria vida. Seu
estado “minimamente consciente”, conforme diz o último boletim médico
divulgado em 18 de março, lhe permite perceber o que o rodeia de bom e
de ruim.
Quando o flautista Proveta surgiu tocando no
quarto, acompanhado pelo sanfoneiro Mestrinho, o homem só faltou
dançar. Já nas duas das vezes em que o filho Mauro Moraes apareceu para
visitá-lo, discussões tensas entre Mauro e um acompanhante de quarto
que permanece ao lado do leito a pedido de Guadalupe entristeceu o
músico profundamente. Se pudesse fazer um pedido, Domingos certamente
suplicaria mais por paz do que pela própria vida.
A luta do maior músico da cultura nordestina, um
dos mais geniais instrumentistas do País, se dá em um quarto do
Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Assim que foi diagnosticado com um
câncer de pulmão, fez tratamentos de rádio e quimioterapia sem jamais
falar sobre a doença com a imprensa. Sua incapacidade de dizer não,
mesmo debilitado, o levou, em dezembro de 2012, até Exu, no interior de
Pernambuco, para tocar nos 100 anos de nascimento de Luiz Gonzaga.
Uma decisão difícil, tomada depois de uma noite de
lágrimas como respostas às súplicas de Guadalupe. “Eu dizia para ele
não ir e ele só chorava. Ele nunca diz não.” Como não entra em avião
nem sob tortura, Dominguinhos saiu de carro de Recife para Exu. A cada
dois quilômetros, ligava para dizer a Guadalupe como estava. Em uma
ligação, reclamou de febre. “Então volta, homem. Volta pelo amor de
Deus”, ela implorou. Domingos foi até o fim e tocou já sentindo o
pulmão fechar. Quatro dias depois, passou mal, foi internado e começou a
lutar pela vida.
Visita
Visita
Três rapazes chegaram quarta-feira do Recife só para ver Dominguinhos. Era um sonho conhecer o mestre. Guadalupe aceitou levá-los até o quarto. Enquanto Domingos dormia, ela contava sobre o dia em que o “trouxe de volta”. Guadalupe implorava para que o marido saísse de seu estado de inconsciência. “Domingos, acorde. Sei que você está me ouvindo. Venha comigo homem, você consegue. Pegue nas mãos desse homem de branco a seu lado e venha...”
De repente, nas lembranças de Guadalupe, o
sanfoneiro levou o tronco para frente e ergueu os braços. Quando tentou
falar, percebeu que não podia e, então, sua expressão foi de pânico.
Guadalupe contava esta história quando percebeu que os rapazes não
olhavam surpresos mais para ela, mas para Dominguinhos. Seu Domingos,
notou a mulher, estava acordado e chorando. “Ele ouviu o que eu disse e
se emocionou.” Ela não chamou os médicos, só confortou o paciente.
“Não desista, não deixe o que aconteceu hoje abalar você.”
Antes dos três fãs chegarem do Recife para beijarem
suas mãos, uma cena triste vivida sobre seu leito pela segunda vez
deixou Dominguinhos visivelmente triste. Quem passou pelo hospital foi
Mauro Moraes, filho do sanfoneiro e de Janete, sua primeira mulher.
Mauro, 53 anos, não tem boas relações nem com Guadalupe, a segunda
esposa de Domingos, nem com Liv, a filha do casal.
Segundo testemunhas, Mauro chegou para visitar o
pai quando se desentendeu com Márcio, o acompanhante que Guadalupe
contratou para ficar o tempo todo ao lado de Dominguinhos. Mauro pediu
para ficar a sós com o pai, mas Márcio se negou a deixar o quarto. Mauro
então teria começado uma discussão acalorada com Márcio, pedindo
privacidade e dizendo que ninguém teria o direito de fazer aquilo com
ele. O clima esquentou e impropérios foram trocados. Mauro vive no Rio
de Janeiro mas está em São Paulo desde que o pai chegou ao hospital.
Contra a vontade de Liv e de Guadalupe, hospedou-se
no apartamento de Dominguinhos e diz que não tem planos de sair de lá
tão cedo. “Sou filho legítimo, que mal tem em eu ficar na casa dele?
Estão me tratando como se eu fosse um bastardo. Eu só quero que me
respeitem. Dizem que estou atrás da herança do meu pai. Eu nunca liguei
para isso, nem carro eu tenho”, diz. Guadalupe não gosta de alimentar
discussões, mas diz estar exausta das desavenças provocadas por Mauro.
Em março, sites publicaram frases do rapaz dizendo
que seu pai estava “em coma irreversível”, informação nunca confirmada
pelo hospital. Dias depois, redes sociais multiplicavam o boato de que
Dominguinhos havia morrido. “Você imagina as pessoas me ligando dizendo
que meu pai morreu”, conta Liv. “Quando disse que ele estava em coma
irreversível, só repeti o que um médico disse para mim.”
O Sírio Libanês não dá notícias que vão além de um
boletim divulgado em 18 de março: “Houve melhora do quadro
cardiológico, respiratório e renal. Do ponto de vista neurológico, ele
apresenta estado minimamente consciente, demonstrando discretos sinais
de recuperação. O paciente permanece internado, sem previsão de alta.” O
coração de José Domingos de Moraes, 72 anos, tem o tamanho do mundo e
segue batendo no ritmo de um xote doído e comovente.
Dias cheios e amigos ilustres
Os dias de Seu Domingos são agitados.
NasdependênciasdoHospital
Sírio Libanês,umdos mais
requisitadosdoPaís, Dominguinhostemuma
rotinadefisioterapia
duas vezes por dia, terapia
ocupacional e fonoaudiologia.
Faz trabalhos ainda em
uma prancha, onde é colocado
em posição vertical. No quarto
há dois meses depois de outros
doismesesna UTI,ele ainda
não se comunica verbalmente
e não fica em pé, mas
reage a estímulos, segundo a
cantora Guadalupe, que se casou
com o sanfoneiro há 37
anos. “Chegamos a nos separar”,
diz ela. “Mas voltamos a
ter contato muito próximo
quandoentendiqueDominguinhos
era mesmo do povo.”
Guadalupe contaqueas visitas
são frequentes. Entre os artistas
que o visitaram, estão
Tatto, do Falamansa, Sergio
Reis, o humorista Tom Cavalcante,
Elba Ramalho, Raul Gil,
ArismardoEspírito Santo, Proveta
e o sanfoneiro Mestrinho.
Uma visita de Alceu Valença
está agendada para hoje.
Alguns músicos levam seus
instrumentos, como Proveta e
Mestrinho. E quando não há visitas,
Guadalupe colocaCDsdo
próprio Dominguinhos. “Às vezes
ele bate o pé acompanhando
o ritmo”, diz ela. “Há quatro
meseseunãoacreditavaquehaveria
evolução alguma. Hoje eu
acredito.Elerecuperouosmovimentos,
osrinsfuncionam,está
se dedicando às fisioterapias”,
diz Guadalupe. Às vezes fazum
bicomepedindobeijo,eeudigo
a ele que isso é assédio”, sorri.
As visitas se emocionam.
“Ohmeumestre, tudo o que eu
sei foi o senhor quem me ensinou”,
disse Mestrinho. Proveta,
depois de tocar para o amigo,
abraçouGuadalupeenãosegurou
mais as lágrimas.
Assim que o pesadelo passar,
Guadalupequerlançarumsongbook
do músicocomo luxo que
ele merece. “Um material de
CDs, livro, partituras e algumas
músicas que eu vi nascer.” / J.M.
Dias cheios e amigos ilustres
Os dias de Seu Domingos são agitados.
NasdependênciasdoHospital
Sírio Libanês,umdos mais
requisitadosdoPaís, Dominguinhostemuma
rotinadefisioterapia
duas vezes por dia, terapia
ocupacional e fonoaudiologia.
Faz trabalhos ainda em
uma prancha, onde é colocado
em posição vertical. No quarto
há dois meses depois de outros
doismesesna UTI,ele ainda
não se comunica verbalmente
e não fica em pé, mas
reage a estímulos, segundo a
cantora Guadalupe, que se casou
com o sanfoneiro há 37
anos. “Chegamos a nos separar”,
diz ela. “Mas voltamos a
ter contato muito próximo
quandoentendiqueDominguinhos
era mesmo do povo.”
Guadalupe contaqueas visitas
são frequentes. Entre os artistas
que o visitaram, estão
Tatto, do Falamansa, Sergio
Reis, o humorista Tom Cavalcante,
Elba Ramalho, Raul Gil,
ArismardoEspírito Santo, Proveta
e o sanfoneiro Mestrinho.
Uma visita de Alceu Valença
está agendada para hoje.
Alguns músicos levam seus
instrumentos, como Proveta e
Mestrinho. E quando não há visitas,
Guadalupe colocaCDsdo
próprio Dominguinhos. “Às vezes
ele bate o pé acompanhando
o ritmo”, diz ela. “Há quatro
meseseunãoacreditavaquehaveria
evolução alguma. Hoje eu
acredito.Elerecuperouosmovimentos,
osrinsfuncionam,está
se dedicando às fisioterapias”,
diz Guadalupe. Às vezes fazum
bicomepedindobeijo,eeudigo
a ele que isso é assédio”, sorri.
As visitas se emocionam.
“Ohmeumestre, tudo o que eu
sei foi o senhor quem me ensinou”,
disse Mestrinho. Proveta,
depois de tocar para o amigo,
abraçouGuadalupeenãosegurou
mais as lágrimas.
Assim que o pesadelo passar,
Guadalupequerlançarumsongbook
do músicocomo luxo que
ele merece. “Um material de
CDs, livro, partituras e algumas
músicas que eu vi nascer.” / J.M.
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