sábado, 23 de fevereiro de 2013

Vira-ser - José Miguel Wisnik


A música da América Latina é discutida sob a neve carnavalesca de Nova York

Na quinta-feira da semana passada, como sempre nesses últimos três anos, eu escrevia minha coluna de sábado, sobre a nevasca em Nova York, onde estive no carnaval, quando caiu a tempestade sobre a zona Oeste de São Paulo, tempestade violenta, ciumenta, mais imprevisível e incontrolável do que a neve que eu vira lá. A energia elétrica do bairro foi para o espaço e só retornou de madrugada. Ilhado pela chuva, com o texto salvo mas perdido dentro do computador inacessível, eu fiquei sem ter como começá-lo todo de novo em algum outro lugar, e faltei ao meu lugar aqui. A chuva do meu bairro, o rio da minha aldeia, quis falar mais alto e calar, de alto a baixo, meus devaneios sobre a neve alheia.

Mas a neve não era tão alheia assim. Na verdade eu estava dizendo que a visão de um grupo de marinheiros brasileiros, mulatos e cafuzos, andando penosamente na neve em Nova York, nos anos 1920, percebidos angustiadamente como “caricaturas de homens”, estava entre os momentos originários de toda a obra de Gilberto Freyre. A interpretação é de Ricardo Benzaquen de Araújo na abertura de seu
“Guerra e paz: Casa grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30”. Freyre se lembra com incômodo, a partir da visão, da frase de um viajante americano ou inglês que enxergara um aspecto de “vira-lata” na população brasileira. Todo o seu esforço ensaístico pode ser compreendido, segundo Ricardo Benzaquen, como a tarefa de refutação e reversão dessa imagem, que coincide aliás com a do famoso “complexo de vira-latas” de Nelson Rodrigues.

Eu não tinha me lembrado disso enquanto enfrentava nas calçadas a nevasca de carnaval em Nova York, embora me sentisse um polaco mulato e cafuzo diante da primeira neve real (as do inverno parisiense sempre me foram leves e passageiras). Fui para um colóquio na Universidade de Columbia, que se propunha a pensar a música e o som na América Latina e no Caribe. A coluna da semana retrasada, que eu deixei pronta quando viajei, cumpria a dupla função de ser uma crônica nostálgica de sábado de carnaval, literalmente de “saudades do Brasil”, ao mesmo tempo que um ensaio para o que ia fazer lá, isto é, falar sobre o “pequeno nada” rítmico, impossível de escrever, que Darius Milhaud sentiu nas músicas de Ernesto Nazareth quando executadas pelo autor, e que podia ser visto como um índice das transformações pelas quais passou a música europeia nas Américas, transformada pela presença da África.

O colóquio revelou-se uma imersão fascinante e pouco acadêmica (se tomarmos a palavra no mau sentido, o de formalidade estéril) no pensamento e nas experiências musicais das Américas, entre músicas eletrônicas e indígenas, salsa e jazz, poesia e canção, em meio às quais a ideia do “pequeno nada” encontrou múltiplas ressonâncias. O compositor equatoriano de origem indígena conta como trabalhou com Stockhausen e volta à música indígena, o crítico paraguaio confronta o som e o silêncio nos ritos guaranis com o pensamento ocidental, os porto-riquenhos (com os quais eu descubro cada vez mais afinidades pessoais e culturais) falam sobre batuques transpostos para a linguagem poética, sobre a “jíbara” camponesa na salsa e as relações desta com o jazz (a palestra entusiástica era feita instintivamente em ritmo de salsa) ou sobre Ruth Fernández, cantora porto-riquenha do tempo de Celia Cruz, Pedro Vargas e Libertad Lamarque. E ainda, a música latina no Harlem ou a música erudita argentina fazendo a paráfrase borgeana do museu sonoro europeu, com a proverbial desincompatibilização portenha da África. As cubanas foram impedidas de vir.
A reunião ia de manhã à noite no último andar do International Affairs Building de Columbia, de onde se via a neve cair, suave e contínua, sobre a cidade mais e mais branca em ritmo minimalista e em escala de land art. Acredito não estar delirando se disser que havia ali um cosmopolitismo concentrado e consciente do grande contraponto de diferenças que fez da América o continente do encontro dos continentes (“Que continente loco!”, me exclamou o venerando Mesías Maiguashca, o índio equatoriano de Stockhausen, enquanto ele saía e eu entrava no banheiro), e que tudo isso encontra seu corpo material e imaterial na música. Digo mais: a recente confirmação do poder de fogo do voto latino na eleição presidencial norte-americana, e o rumo apontando para a inevitável inclusão dos trabalhadores informais e irregulares na realidade dos Estados Unidos, dava às discussões uma nova, mesmo que difusa, sensação de autoridade.
O Brasil também desfruta dessa difusa nova sensação de autoridade. Nada como aquela que eu senti, intimamente, quando Claudia Neiva de Matos mostrou Geraldo Pereira cantando “A dama ideal”, com a entoação tão relaxada e o show de pequenos nadas na voz, sambando soberano sobre a neve de Nova York.


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