domingo, 31 de março de 2013

Tudo a que tem direito - KENNETH SERBIN

O Estado de S. Paulo - 31/03/2013

Com a bandeira do casamento igualitário, gays buscam apenas um senso de pertencimento na comunidade maior

As históricas audiências da Suprema Corte dos Estados Unidos na semana passada sobre duas leis que barram direitos ao casamento gay revelaram o quão rápida e profundamente essa questão entrou no tecido da vida americana.

Como disse o juiz Samuel Alito, porém, a ideia de casamento gay “é mais recente do que telefones celulares e a internet”.

Na terça e na quarta, a Corte ouviu argumentos de advogados com respeito à lei federal de 1996 (a Lei de Defesa do Casamento) negando benefícios a casais do mesmo sexo casados de acordo com leis estaduais e o plebiscito de 2008 na Califórnia emendando a Constituição estadual para definir casamento como entre um homem e uma mulher, medida esta derrubada por um tribunal federal de recursos.

Curiosamente, a referência de Alito a duas das invenções que estão redefinindo as relações interpessoais no século 21 oferece também um parâmetro para as tendências históricas por trás do movimento a favor do casamento gay.

O individualismo extremo e o isolamento físico criados pelo uso de celulares e da internet são as mesmas forças motrizes poderosas que impelem os direitos gays.

Os direitos individuais, assim como os direitos humanos, ganharam força com a Revolução Francesa e, em particular, a Declaração de Independência e a Constituição dos Estados Unidos. “Tomamos essas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que eles são dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre esses estão Vida, Liberdade, e a busca da Felicidade”, escreveu Thomas Jefferson na Declaração.

Esses ideais trouxeram grandes avanços sociais para os Estados Unidos, como a emancipação dos escravos em 1863 e, um século depois, a concessão definitiva de plenos direitos civis aos descendentes de escravos graças ao movimento não violento forjado por Martin Luther King Jr.

Esses ideais – em particular a “busca da Felicidade” – também produziram a cultura de consumo em que a ênfase no “direito” a produtos e serviços excelentes substituiu, em grande medida, a cidadania e a participação democrática que caracterizaram a maior parte da vida americana nos séculos 19 e 20. Os americanos já não veem a si e a seus compatriotas principalmente como “cidadãos”, mas como “consumidores”.

O ideal de igualdade inspirou uma parcela crescente da população americana a redescobrir noções de liberdade e direitos civis na forma domovimento pelo casamento gay.

Numa pesquisa USA Today/Gallup de novembro de 2012, 32% dos entrevistados citaram“ direitos iguais/todos devem ter as mesmas liberdades” como sua razão para apoiar o direito ao casamento de pessoas do mesmo sexo. A mesma porcentagem também apontou “escolha pessoal” e a importância de amor e felicidade,em oposição à orientação sexual, como determinantes de seu apoio ao casamento gay.

O preconceito contra gays e a negação de direitos ao casamento capturaram o imaginário político da juventude americana de uma maneira não muito diferente do apoio de ativistas a LutherKing e aos direitos civis nos anos 1960. Na faixa de 18 a 29 anos, 73% dos entrevistados na pesquisa apoiaram a validade legal do casamento gay, enquanto entre as pessoas com 65 anos ou mais somente 39% expressaram esse apoio.

A controvérsia em torno do movimento por direitos gays talvez possa reavivar noções de cidadania e participação. Entretanto, a Suprema Corte, que deve decidir sobre as duas leis no final de junho, indicou que, embora possa perfeitamente se mostrar favorável aos direitos gays, provavelmente não produzirá uma aprovação abrangente do casamento gay.

Esse é um território muito novo tanto para o tribunal como para a nação, como os comentários do juiz Alito sugeriram. Alguns juízes expressaram dúvidas até sobre se os dois casos deviam ter sido levados ao tribunal superior.

A instituição do casamento heterossexual cristão existiu por 2 mil anos.Ninguém pode prever as consequências de longo prazo de legalizar o casamento gay para a nação inteira. (Nove Estados reconhecem o casamento gay, enquanto trinta têm emendas constitucionais proibindo-o).

Nessa linha,o juiz Antonin Scalia questionou se existiam dados suficientes para demonstrar que filhos não são afetados adversamente quando criados por casais do mesmo sexo. Aliás, adversários do casamento gay têm enfatizado que o casamento heterossexual oferece um ambiente melhor para criar filhos psicologicamente saudáveis. Eles defendem o casamento tradicional, de homem e mulher, como um alicerce fundamental da sociedade americana.

Mas a questão do juiz Scalia opera nos dois sentidos.Logicamente falando, se a falta de evidências( de longo prazo) não permite estabelecer a ausência de danos a filhos de casamentos do mesmo sexo, ela não pode provar tampouco que há danos.

A Suprema Corte se preocupa principalmente com a interpretação da lei e da Constituição. Ela não faz leis, embora conservadores nas últimas décadas tenham acusado o sistema de tribunais federais “ativista” de usurpar os deveres de elaboração de leis do Congresso.

O direito de casar não seria uma panaceia para a comunidade gay – assim como não foi para heterossexuais. Aliás, metade dos casamentos heterossexuais americanos termina em divórcio,e muitos casamentos são assolados por violência conjugal e outros problemas sérios.

Alguns gays – talvez maioria até – nem estarão interessados em casar. Como observou uma professora de Direito lésbica, casar é apenas uma maneira de pessoas gays ganharem um senso de pertencimento na comunidade maior.

Assim, é provável que a Suprema Corte queira decidir o mínimo possível e, como assinalaram alguns comentaristas, deixar a sociedade continuar a elaborar as questões de casamento e criação de filhos.

À SupremaCorte cabe defender a igualdade e o direito à felicidade. Seja qual for a sua decisão, ela pode dar à nação uma lição importante de civismo e tolerância.

Mas ela seguramente não está prestes a começar a definir o que é felicidade.


 /TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

KENNETH SERBIN É CHEFE DO DEPARTAMENTO DE
HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SAN DIEGO E
AUTOR DE PADRES, CELIBATO E CONFLITO SOCIAL:
UMA HISTÓRIA DA IGREJA CATÓLICA NO
BRASIL (COMPANHIA DAS LETRAS)

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