O Estado de S.Paulo - 20/03/2013
A avalanche passou.
Os fatos (sempre estranhos) foram canibalizados e assim transformados
em sinais, sintomas, índices, tendências, retornos e nulidades. A
sociedade tem suas estruturas que lutam contra, a favor ou apesar dos
fatos. Agora vai, pensamos, gritamos ou escrevemos, mas o mundo continua
o mesmo.
Chávez morreu. Como outros heróis, ele morreu e, mesmo se for
devidamente embalsamado, terá o destino de todos nós: um pouco mais ou
menos de lembrança e o nobre esquecimento de uma paz enfim, perpétua.
Entrementes, nesses tempos de renúncias e realinhamentos políticos,
surgiu - graças aos volteios do Espírito Santo - essa figura mediadora
entre a nossa permanente burrice e alguma coisa que nos faça voar e
tentar ver mais longe - um novo papa. O tema nos pautou por algum tempo,
mas já voltamos para a novela e para a tal política (a novidade
esperada), deixando de lado o inesperado da novidade.
Assisti a Argo, o ganhador de melhor filme do ano. Para quem
curtiu Preminger, Wyler, Clair, Ford, o velho Hitch, Wilder, Truffaut e
Capra, é um "bom" filme. Mas a trama interessa: como sair de uma gravata
de realidade por meio de uma fantasia? Americanos são reféns na casa de
uma embaixada que pode ruir e eles serão mortos por uma onda
descontrolada de radicais. Ora, o radicalismo é o outro da rotina
social. Rotinas são programas que seguem uma ordem automática ou
"natural". O sinal de trânsito deve funcionar, mas quando chove ele
desliga. Então, surge o radicalismo de uma rua engarrafada. Nervosos,
vemos baixar em cada um de nós, um espírito diferente. O estranhamento é
a crise dos princípios: tenho pressa e o mundo me ordena não ser
preguiçoso, mas os sinais deste mesmo mundo não me deixam passar.
Voltando a Argo. Um agente da CIA, órgão especializado em
roteirizar anormalidades, descobre que o real pode ser salvo pelo mito.
Num filme, inventa-se um filme para salvar os reféns. Mudando seus
papéis sociais rotineiros de inimigos demonizados do aiatolá, eles se
transformam em produtores, diretores, fotógrafos e atores de um filme de
ficção científica a ser realizado no Irã. Temos, então, um diálogo
intenso do metonímico com o metafórico. Se os radicais acreditam na
montagem, podemos salvar os reféns de um roteiro absoluto dado naquele
momento revolucionário. Se nossa contraficção é bem contada, o filme
vira sucesso e pode ser devorado por um prêmio Oscar. Aliás, deixe que
eu diga entre linhas: não pode haver nada pior do que ser consagrado. O
prêmio é o fim. É o cemitério da criação.
O melhor do filme é quando no aeroporto em Teerã um agente
desconfia do grupo, mas é envolvido na narrativa do filme de ficção que
ficticiamente estaria sendo feito pelo grupo.
E como ninguém resiste a uma piada ou narrativa, sobretudo se
ela não terminou, os agentes deixam passar o grupo tal como Sherazade
viveu mil e uma noites, contando uma história para o sultão e marido
traído que a condenou à morte.
Tentar ver o fim (ou em alguns casos chegar aos finalmente) é o
que nos move. Eu escrevo sem saber o final. E, no final, revejo o
milagre da superação da minha mediocridade por uma mediocridade escrita.
Ninguém seria capaz de viver sem uma narrativa - sem um início, meio e fim num universo interminável.
* * * *
Estou no aeroporto de Congonhas em São Paulo e tenho umas duas
horas para voar para Brasília. Duas horas para matar! Sessenta minutos
sem narrativa ou ficção. Vale dizer, sem foco ou fantasia. Tenho que
"passar hora". Vejo um caro BMW em conveniente exposição ladeado por uma
bela jovem que me informa o que interessa em toda fantasia: o preço é
de 150 paus. Nem pensar...
Caminho sem rumo dentro de um lugar absolutamente demarcado pelo
utilitarismo. Dizem que seria um não lugar. Eu não concordo. Somos
humanos precisamente porque, entre nós, tudo tem um lugar. Se não há
lugar, há a crise.
Ando em busca de um enredo. Vejo algumas pessoas assistindo, num
comedor, ao jogo entre o Milan e o Barcelona. Todos ficam matando o
tempo, mas o futebol ressuscita o tempo com os gols de Messi e o seu
infalível enredo. Rola o jogo e os passageiros viram torcedores, tal
como em Argo e na vida, quando fazemos uma coisa por outra. De repente,
um companheiro de torcida grita que perdeu o avião. O jogo ocasional
englobou a viagem estabelecida. Voltou a si mesmo, xingando-se por ter
sido enganado por uma fantasia.
Por via das dúvidas, armei meu despertador.
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