sábado, 16 de março de 2013

Sem papas na língua - José Miguel Wisnik


 O Globo - 16/03/2013

 

A renúncia de Bento XVI e a crise atual da Igreja Católica

O curto pontificado de Joseph Ratzinger como Bento XVI teve um enorme valor sintomático. Ele fez vir à tona as contradições e as crises que envolvem o lugar da Igreja católica no mundo. Quis confrontar a filosofia dos “mestres da suspeita”, Marx, Nietzsche, Freud e Foucault, intervindo no debate contemporâneo com a força tradicional da instituição. Quis sustentar sibilinamente que o cristianismo católico é a religião superior aos outros monoteísmos (e foi defendido nisso por René Girard, o autor de “A violência e o sagrado”). Estava no papel que escolheu, mas por isso mesmo o desfecho é tão significativo, tanto pelo seu ineditismo quanto pelas suas implicações filosóficas. Ao mesmo tempo, o pensador político de currículo implacável, no plano doutrinário, deixou a política interna e os subterrâneos do Vaticano ao sabor dos apetites da Cúria e da incúria.

Nada que uma renúncia não engrandeça. A sua figura ambivalente de lobo inquisitorial em pele de ovelha sai santificada pelo gesto moral do desapego, pela confissão de fraqueza e pelo descortino com que fez as cartas serem reembaralhadas e o jogo recomeçar. Os sinais dos tempos passaram a soar, no entanto, de maneira nova e indisfarçável.

Um dos meus profetas é Oswald de Andrade (que une de maneira original Marx, Nietzsche, Freud e o pensamento selvagem). De um ponto de vista oswaldiano, a crise atual da igreja pode ser vista como um capítulo da longa “crise da filosofia messiânica” que atravessa os séculos. O patriarcado, a negação da sexualidade, a concentração das riquezas, dos poderes e a postergação da felicidade para um futuro pós-morte são formas da evitação da felicidade na terra, zeladas por uma casta sacerdotal que se formou em condições já longínquas no tempo, e que vem passando pela erosão dos processos históricos.

Oswald reconhece que o poder de Roma se plasmou na síntese política, filosófica e religiosa “do arbítrio judaico, do motor imóvel de Aristóteles e da experiência mística alexandrina”. Sem Roma, diz ele, “Cristo não teria ocupado por vinte séculos os cimos messiânicos do Patriarcado”. E sem Paulo, “o escravo não teria pleiteado a dignidade individual em Cristo que foi a longínqua semente da revolução burguesa”. Assim, o cristianismo é uma religião de vocação revolucionária, que apontou para a revolução burguesa, para a revolução social e para os direitos humanos. Mas a burguesia já “estornou” há vários séculos a dívida messiânica, convertendo-a em extratos bancários e finalmente em cartões de crédito, e o protestantismo já legitimou esse estorno como modalidade da graça. A adaptação do cristianismo ao espírito do capitalismo encontra sua vertente popular nos evangélicos, que crescem entre aquelas populações que acusam na prática o esvaziamento anacrônico dos ritos católicos, quando incapazes de responder a essas realidades. Nesse quadro, a Igreja romana, com suas pompas hierárquicas e seu imobilismo, tende a converter-se numa relíquia patriarcal a figurar, como peça de museu, entre aquelas que ela mesma colecionou.

Fazem parte essencial da crise das formas de poder patriarcal a emancipação feminina, a liberação da sexualidade como direito e como expressão individual, as reivindicações pelo reconhecimento universal dos direitos dos gays, pelo direito ao aborto e demais decorrências. Mas seria então o grande papel restante dessa instituição milenar, o de contrapor-se a qualquer preço ao avanço desses sinais da modernidade, como queria Bento XVI? Pergunta-se também como se sustenta eticamente essa ciosa denegação do desejo sexual por parte de uma instituição que enfrenta mal seus casos de pedofilia, e que pretenderia aplicar essa mesma denegação a seu bilhão de fieis. A Igreja que tinha isolado os contágios marxistas da Teologia da Libertação ficou às voltas com os rebotes freudianos das suas pulsões e dos seus recalques.

Como estava previsto, a bússola do poder romano teve que inverter seu prumo, apontar para o sul, para o “fim do mundo”, para um lugar onde as bases do catolicismo fossem mais autênticas e numerosas, além de postas em risco de diminuição. Mas a fumaça branca revelou “a zebra do ano”, como disse Tom Zé, aquele que nenhum vaticanista adivinhou. O rito é poderoso em si, quando faz-se o nada e da sacada surge o ser, dessa vez na forma do primeiro não europeu, jesuíta e Francisco. E pelo menos sem a voz melíflua do antecessor. Oswald chama isso de “sentimento órfico”, o poder carismático que a religião divide com a arte, o espetáculo, o esporte. A Igreja na defensiva está agora jogando, desde Roma, pelos flancos do grande tabuleiro. Até que ponto mudará o jogo?


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