sábado, 4 de janeiro de 2025

O BONDE DO TIGRINHO - JOÃO BATISTA JR. e ALESSANDRA MEDINA

O BONDE DO TIGRINHO

 Como os influenciadores ganharam fortunas e ajudaram as bets a produzir a pandemia do vício

JOÃO BATISTA JR. e ALESSANDRA MEDINA


Casada com um bombeiro e mãe de um menino, Tathiara Barbosa Fonseca ganhava em média 15 mil reais mensais como corretora imobiliária em Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Em maio de 2022, ela vivia uma fase de estabilidade financeira, depois de receber sua parte na venda de um imóvel de família. Nas horas de descanso, sacava o celular e se entretinha com influenciadores nas redes sociais.



Um dia, deslizando pelos stories do Instagram, Fonseca viu a gaúcha Tali Ramos  (hoje com 1,5 milhão de seguidores na plataforma) recomendar os cursos de outra influenciadora, Luana Fernandes, de São Paulo. As aulas davam dicas sobre como faturar alto no Aviator, um jogo no qual o usuário tenta adivinhar a hora certa de parar um avião durante a decolagem. Casualmente, o Aviator estava disponível no site de uma casa de apostas online, a Betano, cuja sede fica na Grécia.

Na verdade, o Aviator não era feito para jogar – era feito para apostar. A influenciadora dizia recorrer a uma “técnica avançada” que multiplicava cada real em 50 reais. Seu mote era: “1 virando 50”.






Fonseca se matriculou no curso. Desembolsou cerca de 300 reais para ter acesso vitalício aos conteúdos. “Ela explicava sobre probabilidades e janelas de tempo para ganhar no jogo”, lembra. Com as lições do curso e o incentivo das influenciadoras, a corretora baixou o aplicativo da Betano para arriscar a sorte. De início, apostou entre 25 e 50 reais. Às vezes ganhava, às vezes perdia, mas gostou do que lhe parecia uma diversão inocente.



Com o tempo, Fonseca foi aumentando o valor das apostas. Um dia, faturou 72,5 mil reais de uma só vez. Ficou tão empolgada que apostou toda a quantia obtida para multiplicá-la. Perdeu tudo. A essa altura, estava começando a se descontrolar. Quanto mais apostava, mais perdia e mais arriscava de novo, na esperança de cobrir os sucessivos rombos. Entrou na roda-viva típica dos apostadores compulsivos. Em um único dia, torrou 134 mil reais, no Aviator e outros jogos, sempre em busca de uma aposta redentora. “O algoritmo primeiro te fascina, depois te aprisiona e depois te tira tudo”, diz ela.



Fonseca era quem controlava as despesas da casa e tinha acesso inclusive ao salário do marido. Para que ninguém soubesse de seu vício, ela apostava de madrugada, em silêncio, enquanto a família dormia. Depois de raspar toda a conta, a corretora começou a fazer empréstimos. Primeiro com bancos, depois com agiotas. Em 15 de maio de 2023, um ano depois de sua primeira aposta, fez dois Pix para a Betano, nos valores de 13 mil e 12 mil reais. “Eu já não sabia mais o que era número ou dinheiro”, diz. O marido só descobriu o segredo – e a bancarrota da família – no fim de 2023, quando um agiota bateu à porta de sua casa, cobrando os 60 mil reais que havia emprestado a Fonseca. Para saldar a dívida, o casal vendeu a moto e o carro.



Pouco tempo depois, Fonseca enfrentou uma situação limite. Seu filho de 5 anos teve uma crise de asma e precisou de remédios, mas ela não tinha um tostão na carteira para comprar o medicamento. Ficou desolada, mas, nem assim, conseguiu abandonar seu vício no jogo. “Eu sonhava com o barulho e as cores do joguinho”, conta. “Eu nunca tinha tido um vício na vida. Não reconheci o que estava acontecendo comigo.”



No mês seguinte, ela continuou cedendo à tentação, embora com apostas moderadas – entre 10 e 30 reais. Em 29 de dezembro, fez seus últimos dois Pix para a Betano, nos valores de 100 e de 300 reais. Havia sido um final de ano difícil, no qual se sentiu isolada da própria família e passou a entender, por meio de leituras na internet, a gravidade do vício. Finalmente, conseguiu colocar um ponto final na jogatina e passou a se tratar com psiquiatra e psicólogo.



Ao longo de três anos, Fonseca perdeu 1 883 981,08 reais, sem contar juros e encargos de empréstimos. É mais do que recebeu na venda daquele imóvel de família. Os valores estão documentados no processo que ela move contra a Betano e outras 44 empresas de meios de pagamento que intermediaram suas apostas. Ela diz que, das vezes em que suas apostas deram certo, apenas uma empresa depositou o dinheiro em sua conta. No processo, Fonseca alega que o divertimento era na verdade uma emboscada e tenta receber o dinheiro de volta.


A piauí procurou a Betano para saber a lista dos artistas e influenciadores que contratou e como o valor dos cachês era definido. A Betano não quis divulgar valores e disse que tem duas modalidades de “parceria” com influenciadores. Uns postam nas redes sociais da própria Betano em troca de uma remuneração fixa e outros divulgam a marca em suas redes sociais. A piauí também perguntou sobre as empresas de meio de pagamento contratadas pela Betano, que, na maioria, não pagaram o valor das apostas. A empresa respondeu que trabalha “somente com operadores financeiros e processadores de Pix licenciados e autorizados pelo Banco Central”.


A influenciadora Luana Fernandes disse que jamais indicou a Betano em seu curso, ou qualquer outra casa de aposta. Alega que ela descobriu uma tática infalível e, como não se pode apostar sem o uso de alguma plataforma, ela apenas “mencionava” aos alunos os nomes das plataformas em que costumava jogar. Era “como opção para jogar, não como indicação”, disse. Tali Ramos, por sua vez, afirmou que daria entrevista e pediu para receber as perguntas por escrito no WhatsApp. Depois que as perguntas foram enviadas, nunca mais voltou a fazer contato.


O desfalque sofrido pela corretora Tathiara Fonseca é uma gota no oceano de dinheiro torrado pelos brasileiros na jogatina online. O volume total é astronômico. De acordo com o Banco Central, apenas nos primeiros oito meses do ano passado 24 milhões de brasileiros gastaram, em média, 20,8 bilhões de reais por mês nas bets. Pior ainda: esse número contabiliza só pagamentos via Pix, já que outros meios de pagamento – como cartões de débito e crédito – estão fora do radar. Os jogos online afetam inclusive o Bolsa Família: dos 14,1 bilhões de reais distribuídos mensalmente pelo governo, 3 bilhões foram repassados para as bets. De novo, apenas em pagamentos via Pix.


Os números indicam que os brasileiros se tornaram usuários pesadíssimos das plataformas de apostas. Em 2022, ano da estatística mais recente disponível, o Brasil foi o campeão mundial: 113,9 milhões de apostas, segundo a Similarweb, que analisa dados de sites. Na sequência, vêm os Estados Unidos, com 77,9 milhões de apostas. Apesar de 16% da população brasileira não ter acesso à internet, o país registra o segundo maior tempo médio de navegação diária do mundo: 9 horas e 13 minutos, atrás apenas da África do Sul, de acordo com a agência We Are Social e da empresa de monitoramento online Meltwater.


Há dois tipos de plataformas de jogatina, chamadas de bets (“apostas”, em inglês). Um é o dos jogos, como o Aviator (conhecido como “aviãozinho”), o Balloon (“balãozinho”) ou o Fortune Tiger (“o tigrinho”), o mais famoso deles. Todos são adaptações digitais de videogames ou de caça-níqueis de cassinos. Simulam que tudo depende da habilidade do jogador, quando, na verdade, depende da sorte do apostador. A outra modalidade da jogatina online é a de palpites esportivos, em geral sobre futebol. As apostas versam sobre múltiplos aspectos – o placar do jogo, se alguém receberá um cartão amarelo ou vermelho, se algum jogador fará gol contra.


O volume de apostas chegou a tal ponto que a economia está sentindo o baque. O empresário Belmiro Gomes, presidente da rede de atacarejo Assaí, chegou a atribuir às bets os resultados insatisfatórios de suas 294 unidades. Disse que os clientes de baixa renda estão comprando menos comida porque destinam parte de seus ganhos aos aplicativos de apostas. A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, pressionada pela queda do faturamento do setor, pediu para participar de uma ação judicial contra a lei que autoriza as apostas online, sob o argumento de que viola “o princípio constitucional fundamental da dignidade humana e os princípios gerais da ordem econômica”. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, autora original da ação judicial, divulgou que, por causa das apostas, 1,3 milhão de pessoas entraram em inadimplência no primeiro semestre de 2024.


Para provocar tamanho estrago, as bets movimentam uma máquina de propaganda de alta potência. A cartada mais audaciosa até agora foi a da própria Betano, que comprou o direito de colocar seu nome na série A do Campeonato Brasileiro de futebol masculino, que passou a se chamar Brasileirão Betano. Estima-se que ela tenha pagado à Confederação Brasileira de Futebol (cbf) entre 70 e 80 milhões de reais. Dos dez maiores patrocinadores de times brasileiros, oito são bets. O Flamengo é o que mais arrecada: foram 105 milhões de reais pagos pela Pixbet em 2024. O Corinthians chegou a ter um contrato de 120 milhões de reais com a VaideBet, rescindido depois de suspeitas de uso de laranjas no pagamento.


As bets também invadiram as telas da tevê. Desde 2020, a Rede Globo abocanha um bom dinheiro nesse universo. A Betano chegou a adquirir, em 2022, uma cota publicitária do Jornal Nacional, um dos horários mais caros da emissora. No ano passado, o programa Big Brother Brasil mordeu 80 milhões de reais do site Esportes da Sorte. Um levantamento do site Notícias da TV estima que a emissora fechou o ano com faturamento em torno de 600 milhões de reais com publicidade de bets.


A Globo não confirma os valores, mas diz que o segmento das bets não está entre os cinco mais relevantes em seu faturamento. Também não comenta sobre a adequação de veicular anúncio de uma jogatina – que se vende como uma diversão, esconde que a aposta é um risco, provoca dependência e infelicita a família de milhões de brasileiros. (A Caixa Econômica, pelo menos, informa sempre as chances – ínfimas – de alguém ganhar os prêmios dos seus jogos, não concede bônus nem usa algoritmos para capturar usuários.)


O que mais chama a atenção, no entanto, é a publicidade das bets estreladas por influenciadores digitais e celebridades. Ao contrário da Globo, da cbf ou do Flamengo, os influenciadores não são pagos para apenas abrir um espaço comercial no qual as bets vendem sua imagem e seu produto. Eles são pagos para recomendarem o uso do produto e se engajam pessoalmente na mensagem, como se as apostas fizessem parte de sua rotina pessoal e dos seus ganhos. Os cachês são milionários, com valores até então inéditos no mercado publicitário. Há casos em que a remuneração é um percentual sobre a perda dos apostadores. Ou seja: quanto mais o usuário perde, mais o influenciador ganha. No mercado, a modalidade é chamada de “cachê da desgraça alheia”.


A influenciadora Gessica Kayane, conhecida como Gkay, conquistou fãs com conteúdos de humor popularesco e interações com outros influenciadores. Hoje, ela tem mais de 20 milhões de seguidores no Instagram, um número superior ao da cantora Madonna. Rica e famosa, com contratos com a Coca-Cola e o iFood, Gkay também quis se transformar numa celebridade chique e referência na moda. Passou a comprar roupas de marcas de luxo, com vestidos que chegam a custar 100 mil euros. Também começou a frequentar as semanas de moda europeias, acompanhada com uma equipe – assistente, maquiador e fotógrafo – que produz conteúdos para suas redes. Entre um desfile e outro, ela posta publis (como são chamadas as mensagens patrocinadas) que ajudam a custear o Prada de cada dia. Entre um luxo e outro, ronronam alguns tigrinhos.


Em junho passado, um vídeo mostrou Gkay no terraço de um hotel em Paris com vista para a Torre Eiffel, usando um vestido da estilista holandesa Iris van Herpen. Ela simulava posar para um ensaio fotográfico até que – pausa – suspendeu toda a cena para apostar no aplicativo Esportes da Sorte, recheado de jogos online. Gkay havia feito um contrato de ao menos dois anos com a plataforma de apostas, cuja sede fica no paraíso fiscal de Curaçao, no Caribe. Seu cachê mensal: 1,4 milhão de reais.


Quando a propaganda foi divulgada, Gkay começou a receber uma avalanche de críticas. Seus detratores diziam que, ao recorrer a um cassino online para ganhar milhões, ela havia se tornado uma Robin Hood às avessas, tirando dinheiro dos pobres para dar aos milionários empresários das bets. A má repercussão levou Gkay a romper o contrato. “Ela só queimou o próprio filme com isso”, diz uma agente de influenciadores e artistas que já fechou negócios com Gkay.


Gkay não perdeu apenas a Esportes da Sorte. As grifes de luxo do grupo lvmh – dono da Louis Vuitton e da Dior, entre outras várias marcas – não se interessam em contratar artistas e famosos que fazem propaganda de bets. Os grandes bancos também não. “A Gkay, que tem um público simples, mas quer se comunicar com o alto luxo, agora acabou, ficou num limbo”, diz a agente de influenciadores. Gkay segue, porém, faturando alto com outros contratos: cobra em média 150 mil reais para aparecer em algum evento, e 80 mil por post publicitário. Nem Gkay, nem a Esportes da Sorte quiseram dar entrevista.


(Pouco depois do caso Gkay, a Esportes da Sorte enfrentou um escândalo. O dono da empresa e outras dezoito pessoas – entre elas, a influenciadora e advogada Deolane Bezerra – foram presos sob suspeita de usar a plataforma para lavar dinheiro do crime. O cantor sertanejo Gusttavo Lima também teve a prisão decretada por suspeita de ocultar em suas empresas 49,4 milhões de reais recebidos da Esportes da Sorte e da VaideBet, da qual, segundo as investigações, ele é sócio. O cantor, que estava no exterior, só voltou ao Brasil depois que o pedido de prisão foi revogado.)


Outra influenciadora que faturou alto com as bets foi Maya Massafera. Estimase que seu contrato com a Blaze seja de 7,8 milhões de reais anuais, mas nem ela, nem a bet confirmam o valor. Seu grande momento de garota-propaganda deuse no Instagram, depois da cirurgia nas cordas vocais, realizada como parte do seu processo de transição de gênero. Seus 5,5 milhões de seguidores estavam ansiosos para ouvir sua voz pela primeira vez. Até então, Massafera vinha se comunicando com seus fãs por meio de gestos e beijinhos. No aguardado dia de revelar seu novo timbre, ela aproveitou para promover a Blaze, cuja sede também fica em Curaçao, no Caribe.


Massafera é rica de berço. Costuma usar roupas e bolsas de grifes caras, como Chanel e Hermès, viaja de jatinho e frequenta festas em Los Angeles, Cannes e Paris. Mesmo assim, ela tenta convencer os seguidores de que é fissurada nas apostas. Uma série de stories publicados em meados de outubro mostrava a influenciadora sentada no banco traseiro de um carro, anunciando créditos para os seguidores fazerem seus primeiros jogos no cassino online: “Vou te dar até mil reais agora. Clica aqui nesse link, tem que ter mais de 18 anos e tem que ser a primeira vez”, avisou. E prosseguiu com um discurso “responsável”: “Gente, eu ganho dinheiro, mas meu foco principal é diversão. Lembre disso. Por mais que possa ganhar dinheiro, o foco principal tem de ser diversão.” Ela então disse ter apostado 500 reais e mostrou a tela do celular, comprovando que acabara de ganhar um prêmio de 3 mil reais. “Eu amooo!!!”, disse.


Desde o contrato com a Blaze, Massafera não faz mais nenhuma propaganda para anunciantes de outras áreas. À piauí, ela disse que não pode falar sobre o assunto em razão da cláusula de confidencialidade do seu contrato. O crédito de mil reais era real, concedido para atrair apostadores, que logo perdem todo o crédito e, se a isca tiver o efeito desejado, começam a perder algum dinheiro próprio. A Blaze não respondeu ao pedido de entrevista.


Até o influenciador Felipe Neto, uma potência digital que se engaja em causas progressistas, se rendeu às bets. Ele foi contratado pela mesma Blaze. “Já na primeira vez fui procurado com uma proposta agressiva”, disse ele à piauí. Neto contou ter recusado o convite inicial, e também o segundo e o terceiro. Até que, no quarto chamado, decidiu topar. O valor do seu cachê já havia subido para a casa de dezenas de milhões de reais por ano. Ele impôs uma condição: a propaganda não podia dizer que a plataforma era uma oportunidade para que os jogadores obtivessem uma “renda extra”. Fechou um contrato com duração de três anos, que poderia ser renovado por mais cinco.


O que levou o influenciador a ceder? “No intervalo entre o primeiro e quarto convite, vi inúmeros influenciadores se tornarem embaixadores de casas de apostas. Aquilo me levou a pensar que não teria nada de mais em aceitar”, justifica. Era o caso, por exemplo, de Júlio Cocielo (24 milhões de seguidores no Instagram), também contratado da Blaze. “Não tinha praticamente quem não fizesse. Aí, seguindo uma ideia estúpida, eu me convenci de que poderia aceitar aquilo sem ser antiético.”



Mas, enquanto promovia a jogatina online, o influenciador passou a ler notícias e reportagens que falavam do vício em bets e do endividamento crescente da população. Ele conta que começou a sentir um peso na consciência. E, embora tivesse dito que não falaria das apostas como fonte de renda, cometeu um deslize. Postou em sua conta no Instagram, onde soma 17,3 milhões de seguidores, uma legenda – que veio pronta do marketing da Blaze – que apresentava o cassino online justamente como uma chance de faturar uma “renda extra”. O anúncio ficou 10 minutos na rede até ser apagado. Depois de dez meses, Felipe Neto cancelou o contrato e resolveu se tornar uma voz crítica aos influenciadores que fazem esse tipo de publicidade. “As casas de apostas criam uma ansiedade no influenciador, que recebendo cachês tão altos e mudando de patamar financeiro, sentem que precisam agradar o anunciante”, diz.


A influenciadora Virginia Fonseca assinou um contrato com a Esportes da Sorte nos termos do “cachê da desgraça alheia”. Ganha 30% do que os usuários perdem. Funciona assim: se o apostador ingressa na plataforma por meio de um link divulgado por ela e perde 100 reais numa aposta, 30 reais vão para a influenciadora. Em dezembro de 2022, ao assinar o contrato, Virginia recebeu um adiantamento de 50 milhões de reais, segundo um profissional envolvido no negócio. Indagada sobre a razão de ter aderido à modalidade do “cachê da desgraça alheia”, Virginia não respondeu.


Ela é dona do nono perfil mais popular do país no Instagram, com cerca de 52 milhões de seguidores. Também é conhecida por ser nora do cantor Leonardo e, agora, apresentadora de um programa no sbt. Virginia fez o primeiro anúncio da Esportes da Sorte em janeiro de 2023. Gravou um story fazendo uma aposta e atraiu 120 mil novos apostadores. Tempos depois, ela trocou de bet: passou a trabalhar para a Blaze. Contrato de 29 milhões por ano.


A mesma Blaze paga um cachê de 40 milhões de reais por ano para Carlinhos Maia, influenciador com 34 milhões de seguidores no Instagram. Ao ser criticado por propagandear a jogatina online que arruínam a vida financeira de parte dos usuários, Maia defendeu-se: “Se eu disser ‘Pule do penhasco’, você vai pular? Não.” É um pequeno sofisma, porque o propósito de casas de apostas é que seu público jamais pule do penhasco – e seja iludido de que consegue escalá-lo até o cume do sucesso.


A Blaze está sendo investigada pela Polícia Civil do Estado de São Paulo por suspeita de estelionato, depois que apostadores denunciaram que os prêmios mais altos nunca eram pagos. O garoto propaganda mais famoso da plataforma é o jogador Neymar, o brasileiro número 1 no Instagram, com 227 milhões de seguidores no Brasil e no mundo. Além do contrato de Neymar, estimado em 100 milhões de reais, seu pai ganhou 4,5 milhões para intermediar o acordo da bet com o Santos Futebol Clube.


Nas redes, há até quem venda o próprio nome para as bets. O ex-promotor de eventos David Brazil, amigo de artistas e jogadores de futebol, mudou o endereço de seu perfil no Instagram, com 9,1 milhões de seguidores, para @davidpixbet. Em troca, a Pixbet pagou a reforma do seu apartamento, orçada em cerca de 500 mil reais. Hoje, seu contrato com a marca é de 200 mil reais mensais.


Até pouco tempo atrás, uma fronteira intransponível para as bets era a de artistas de primeira linha e famosos da tevê. Há quem continue resistindo à tentação dos milhões. A cantora Ivete Sangalo e a atriz Taís Araújo estão entre os nomes que dizem “não” às abordagens das bets logo de cara, sem sequer discutir o cachê. “A construção da marca pessoal demora muito. O artista representa e endossa a marca que patrocina”, diz uma agente de artistas. “Os tigrinhos da pagam muito porque compram, na verdade, a credibilidade de alguém, para depois queimar o filme da pessoa de forma irreversível.” O empresário de uma badalada dupla sertaneja feminina conta que foi procurado com um contrato de 12 milhões de reais por seis meses para uma plataforma de jogos. Não topou.


Um dos que não demoraram a ceder foi o locutor Galvão Bueno. Ele entrou no ramo em 2021, como garoto-propaganda da Pixbet, e hoje defende a Betnacional, casa de apostas que também patrocina o jogador Vinícius Júnior, do Real Madrid, e cuja operadora também fica em Curaçao. Os astros não quiseram dar entrevista. A piauí perguntou a Felipe Neto, sócio da Play9, que agencia Galvão Bueno e Vinícius Júnior, por que apoia o contrato dos agenciados, sendo ele próprio um crítico das bets. Neto argumentou que ambos emprestam a imagem para uma empresa que foca em apostas esportivas. (Não é bem assim. A Betnacional também tem seus tigrinhos e afins.)


Entre os atores, quem quebrou o tabu recentemente foi Cauã Reymond, que tem 15 milhões de seguidores no Instagram. Desde maio de 2024, sua imagem está a serviço da BateuBet, graças a um contrato anual de 22 milhões de reais. Em um vídeo, o ator surge, como num passe de mágica, em um estúdio, ao lado de Grafite, ex-jogador de futebol e comentarista de tevê. “Não vai me dizer que eu estou num comercial de apostas, Grafite”, diz Reymond. Uma voz feminina responde: “Cauã, isso aqui na verdade é uma oportunidade.” O roteiro desvia para um papo sobre alimentação saudável, até que volta para a jogatina, e Grafite diz para o ator: “Tá com o celular na mão? Aproveita e faz um palpite no jogo de hoje.” Reymond diz: “Não, não. Não faço aposta, não.” Grafite emenda: “Não fazia. BateuBet acredita em apostar com consciência.” Em outro vídeo, Reymond diz que na BateuBet “você aposta para cair na conta e não passar da conta”.


A conversa sobre “responsabilidade” cai muito bem na publicidade, mas nas plataformas de apostas é salve-se quem puder. A BateuBet é uma das poucas empresas brasileiras, nascida no Recife e hoje sediada em Alphaville, na Grande São Paulo. Mas todas – quer fiquem no Brasil, em Curaçao ou na Grécia – funcionam do mesmo jeito: misturam apostas esportivas com cassinos online e diferentes jogos, como Rico Gorila, Gates of Olympus, Fortune Panda e o famoso Fortune Tiger, o tigrinho. E o nível de “responsabilidade” também não muda entre as plataformas. Um dos sócios da BateuBet, aliás, aparece em casos tão mal explicados, que a história merece um capítulo à parte.


O promotor de eventos pernambucano Alexsandro Paulo França de Melo, conhecido como Lekinho, comprou a BateuBet em janeiro de 2024. Três meses depois, o quadro de sócios da BateuBet se ampliou com a adesão de Thales Janguiê Diniz e duas empresas de investimentos, ambas ligadas à família Diniz – a Evimeria e a Epitychia. O pai de Thales, o empresário José Janguiê Diniz, é dono da maior rede privada de universidades do Nordeste e acumulou uma fortuna de 3,3 bilhões de reais, segundo a revista Forbes. Na última eleição municipal, ele ficou conhecido ao bater às portas dos endinheirados da Avenida Faria Lima, centro financeiro do Brasil, para apresentá-los a Pablo Marçal, o ex-coach que concorreu a prefeito de São Paulo.


Em julho passado, pouco antes do anúncio de que o governo passaria a exigir uma outorga no valor de 30 milhões de reais para que as bets pudessem operar no Brasil, os sócios fizeram um aporte robusto no capital social da BateuBet: passou de 100 mil para 51,5 milhões de reais (51% de Thales Diniz e suas empresas, e 49% de França de Melo). A dinheirama do bolso de França de Melo é intrigante.


Antes de fazer o aporte, ele parecia estar em situação de penúria. Enfrentava um pedido de prisão porque não pagava a pensão alimentícia havia três meses (no total, 1 418 reais, que ele quitou) e lidava com uma ordem de despejo por falta de pagamento do condomínio do apartamento no bairro da Madalena, no Recife. Além disso, havia anos não pagava o financiamento de um imóvel pela Caixa Econômica Federal e batalhava para impedir que o bem fosse leiloado. Em e-mail ao banco, mandou uma mensagem dramática: “Perdi minha renda fixa há alguns anos e desde então parei de pagar o financiamento imobiliário. Perdi tudo que eu tinha e acumulei várias dívidas. Nos últimos meses, comecei a trabalhar como vendedor e consegui vir pagando minhas dívidas. Contudo, a dívida do meu apartamento ficou impagável. Hoje, levo uma vida mais humilde e não tenho como morar no mesmo lugar.”


A carta propunha uma solução para a pendenga. França de Melo dizia que havia conseguido um comprador disposto a pagar 380 mil reais pelo apartamento, e que esse dinheiro poderia ficar com o banco, caso a dívida fosse eliminada. Àquela altura, havia 104 prestações em aberto, no valor total de 581 918,76 reais, além de 219 456,52 de saldo devedor. A Caixa não atendeu ao pedido e tomou o imóvel. França de Melo foi então à Justiça para reaver o bem, alegando que é sua moradia e classificando o leilão de “injusto e ilegal”. Acabou pagando a dívida e o leilão foi suspenso.


Só conseguiu quitar os valores com a ajuda providencial de um advogado chamado Victor Oliveira Silva. O advogado saldou o iptu (11 mil reais) e o condomínio (88,8 mil) do imóvel financiado pela Caixa. Mas fez bem mais do que isso. No mesmo mês em que França de Melo se dizia falido, um imóvel de frente para o mar na Praia de Boa Viagem, uma das áreas mais caras da capital pernambucana, foi passado para seu nome. Com 221 m², o apartamento custou 2 milhões de reais. A piauí descobriu que o dinheiro da compra saiu de uma conta bancária do advogado Oliveira Silva. Procurado para falar sobre sua rápida ascensão – de endividado a protegido de um advogado e, em seguida, investidor multimilionário –, França de Melo indicou que tudo aconteceu em razão do seu trabalho. “A única coisa que cai do céu é chuva”, disse.


A BateuBet declarou à Secretaria da Fazenda de São Paulo que todo o aporte feito por França de Melo se deu por um “contrato de alienação fiduciária de quotas e outras avenças” entre ele e os sócios. Trocando em miúdos, um empréstimo. A Junta Comercial diz que isso não é ilegal, mas França de Melo não conhece o documento. “Não teve empréstimo”, diz ele. “Tudo dinheiro nosso. Coloquei dinheiro meu também.” A piauí perguntou se ele tem sócio oculto. “Não tenho sócio. Não conheço você, não vou responder.” Apesar das dívidas – com financiamento, pensão, iptu, condomínio –, ele afirma que é abastado e tem “quase trinta apartamentos”.


No dia 29 de maio passado, França de Melo postou em uma rede social uma foto ao lado de Cauã Reymond e Grafite, feita quando os dois gravavam uma publicidade para a BateuBet. A legenda diz: “Escrevendo uma nova História.” Ele conta que o convite a Reymond foi parte de uma estratégia. “Temos a ideia do jogo responsável e consciente, ele se identificou muito com a campanha e com as diretrizes da empresa. Fiz reunião com ele em São Paulo, fechamos uma linda parceria. O ponto X da parceria foi ele ter credibilidade.” França de Melo também explicou a escolha de Grafite: “Ele nunca se envolveu em polêmica, e a gente buscava passar para o nosso público uma coisa de ser uma pessoa negra, de ter representatividade.”


Procurado pela piauí, Cauã Reymond não quis se pronunciar, mas lembrou que Galvão Bueno e Vinícius Júnior fazem publicidade para bets. Grafite também não quis fazer comentário. Por Whats- App, o advogado Victor Oliveira Silva tampouco se manifestou: “Amigo, não sei do que se trata. Sendo assim, não irei passar qualquer informação que seja.”


A pedra fundamental do mercado das bets foi assentada no final do governo de Michel Temer. Querendo arrecadar dinheiro para investir na segurança pública, o governo teve a ideia de legalizar as apostas esportivas, que deixariam de ser uma contravenção penal. Assim, poderia cobrar impostos sobre as empresas. Naquela altura, as bets já atuavam no país ilegalmente – e, claro, não eram taxadas. Havia centenas de empresas operando na clandestinidade. No fim de 2018, Temer sancionou a lei, criando a “aposta de quota fixa”, modalidade em que o apostador sabe de antemão o valor do prêmio. A lei deveria ser regulamentada em dois anos, prorrogáveis por mais dois.


No governo de Jair Bolsonaro, no entanto, o assunto ficou na gaveta. A equipe econômica, de olho no potencial de arrecadação tributária, queria regular o setor. Na fatídica reunião ministerial de abril de 2020, o então ministro da Fazenda, Paulo Guedes, defendeu a jogatina em cassinos. Em diálogo com a ministra Damares Alves, que se opunha aos jogos virtuais ou presenciais, Guedes disse que só adultos teriam acesso e, portanto, que cada um cuidasse de si: “É só maior de idade [...] Aquilo ali não atrapalha ninguém. Deixa cada um se foder. Ô Damares, Damares, Damares... O presidente fala em liberdade. Deixa o cara se foder, pô. Lá não entra nenhum brasileirinho desprotegido.”


Mas a regulamentação não saiu. Ao longo de quatro anos de limbo jurídico, criou-se então um cenário ideal para as bets. Aproveitando que estavam legalizadas, mas não tinham nenhum freio ou controle, elas expandiram seus negócios, introduzindo a operação online de jogos clássicos de cassino, como roleta, caça níquel e blackjack. Como a maioria das plataformas era estrangeira e tinha sede em paraísos fiscais, os recursos saíam do Brasil sem entrave. Por esse duto, escoaram bilhões de reais para o exterior, deixando para trás milhares de brasileiros falidos e viciados.


Em 2023, no governo Lula, finalmente começaram as providências para regular um mercado que, naquela altura, já era um fenômeno social e aparecia em  todo o tipo de propaganda – na tevê, no uniforme dos jogadores de futebol, nas redes sociais. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também percebeu o potencial de arrecadação das apostas e o assunto entrou na pauta. Em julho, o governo publicou uma medida provisória com as primeiras regras de operação e taxação do setor. Em paralelo, o Congresso começou a discutir um projeto de lei que estabelecia regras adicionais, inclusive sobre tributação do setor, e definia prazos para regularização das bets.


O projeto, negociado pelo governo Lula, previa a inclusão dos jogos clássicos de cassino, cuja operação poderia se dar nos mesmos sites das bets. O Senado queria excluir esse trecho, mas o governo bateu o pé: se era para legalizar, era melhor legalizar tudo de uma vez, pois o mercado já estava tomado por esse tipo de jogatina. Em nome da bancada do pt, a deputada Dandara Tonantzin, de Minas Gerais, enfatizou que havia um acordo para aprovar a íntegra do texto, com os jogos de cassino no pacote. “Não temos medo de amanhecer o dia aqui, não! Se Vossa Excelência quiser ficar até o amanhecer do dia, nós estaremos juntos”, disse Tonantzin ao presidente da Casa, durante a votação que, de fato, avançou a madrugada do dia 22 de dezembro de 2023.


Houve reclamação de alguns aliados, como o deputado Chico Alencar (Psol-rj), que manifestou incômodo com a manutenção dos jogos no texto. “Faço a orientação do voto sem nenhum entusiasmo.” A bancada evangélica, cuja maioria sempre se opôs às apostas, também protestou. “Do jeito que está, o que esse projeto de lei vai fazer é exatamente aumentar mais ainda a garfada nos pobres”, disse o deputado General Girão (pl-rn). “Talvez agora seja necessária uma bolsa caçaníquel para garantir um dinheiro extra para o jogo”, ironizou.


Ninguém deu muita atenção. Com as bênçãos do governo e do Centrão, a lei que regulamenta o setor foi publicada no Diário Oficial da União em 30 de dezembro de 2023. Ficou conhecida como Lei das Bets. No mês seguinte, em janeiro, já implementando as primeiras medidas da regulamentação, o Ministério da Fazenda criou a Secretaria de Prêmios e Apostas. Definiu-se que as empresas teriam até o dia 20 de agosto de 2024 para pedir autorização para operar no Brasil. Proibiu-se o jogo a crédito (por cartão ou por empréstimo da plataforma) e, a partir de janeiro de 2025, as bets teriam que pagar os prêmios em até 120 minutos depois de feito o pedido. (No site Reclame Aqui, entre janeiro e outubro do ano passado, boa parte das 155 mil queixas diz respeito a prêmios não pagos.)


Tudo parecia caminhar bem, e o Ministério da Fazenda estimava arrecadar de 3,4 bilhões de reais em tributos com o segmento em 2024. Ocorre que toda a negociação sobre a regulamentação fora conduzida apenas pela equipe econômica, sem participação de outros setores – e, portanto, sem análise do impact social e saúde mental. Na agenda do Ministério da Fazenda, as diretrizes para evitar o jogo patológico e prevenir o endividamento do apostador estavam em penúltimo lugar na lista de prioridades. A Fiquem Sabendo, agência especializada no acesso a informações públicas, mostrou que, entre março e setembro do ano passado, houve 209 reuniões sobre a regulamentação. Os representantes do Ministério da Saúde ficaram de fora de 207. Estiveram em só duas.


Até que o Banco Central divulgou aquele dado assustador: em agosto de 2024, 3 bilhões de reais do programa social mais importante das gestões petistas, o Bolsa-Família, haviam escoado pelo ralo das apostas nas bets. Começou então o barata-voa.


A dirigente do pt, Gleisi Hoffmann, comparou a situação à abertura das portas do inferno. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, anunciou que o vício em apostas era uma pandemia, mas até meados de dezembro não tinha conseguido nem nomear um porta-voz dentro da sua pasta para falar sobre o assunto. O presidente Lula ameaçou até “acabar definitivamente” com as bets se o resultado da jogatina desenfreada for o endividamento das famílias mais pobres.


O procurador-geral da República, Paulo Gonet, pediu ao stf que declarasse a inconstitucionalidade da lei que regulamentou as bets, por considerar que “a legislação é insuficiente para proteger direitos fundamentais dos consumidores, em face do caráter predatório que o mercado de apostas virtuais ostenta”. O ministro Luiz Fux, relator da ação no Supremo, determinou medidas para proibir publicidade de bets que atinjam crianças e adolescentes e mandou o governo vetar o uso de recursos do Bolsa Família em apostas – coisa que o governo já informou que não tem meios de fazer.


No afã de conter a avalanche de estragos, o Ministério da Justiça proibiu as bets de oferecer bônus a novos usuários, uma arapuca efetiva para menores de idade, que frequentemente não têm renda para jogar. No início de dezembro passado, um ano depois da aprovação da Lei das Bets, Lula decidiu criar um grupo de trabalho interministerial para tratar da prevenção e tratamento do vício em apostas. Pela primeira vez, reuniu todos os ministérios para discutir o assunto de maneira transversal.



No Congresso, o assunto também virou emergência. A senadora Soraya Thronicke (Podemos-ms) pediu a abertura de uma cpi para investigar as bets.


A cpi já aprovou 170 requerimentos, entre eles a convocação de integrantes do Ministério da Fazenda, da Advocacia- Geral da União e da Polícia Federal, além dos sócios e representantes das seguintes casas de apostas: Esportes da Sorte, VaideBet, Blaze, Betfair, Betnacional, Betano e Sportingbet. Os influenciadores que divulgam sites de apostas também entraram na mira da cpi: Gkay, Deolane Bezerra, a cantora Jojo Todynho, o cantor Wesley Safadão, o humorista Tirulipa (filho do deputado federal Tiririca) e o influenciador Luan Kovarik, conhecido como Jon Vlogs


Até meados de dezembro do ano passado, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) informava que 221 bets estavam autorizadas a funcionar em todo o territorial nacional. Outras 39 receberam o aval para operar apenas em âmbito estadual. A agência bloqueou mais de 5 mil sites que não conseguiram sinal verde para operar. As duas listas, dos aprovados e dos reprovados, estão repletas de empresas que, até pouco tempo, fizeram a festa com a jogatina online, longe do radar da fiscalização.


A explosão das bets mudou a rotina do Programa Ambulatorial do Jogo (Pro-Amjo), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (usp), referência nacional em tratamento de ludopatias, nome que se dá ao vício em jogos. O coordenador do programa, Hermano Tavares, conta que o número de pessoas que procuram ajuda triplicou entre 2023 e 2024, mas o Pro- Amjo só consegue receber, em média, dez novos pacientes a cada mês.


A necessidade de ampliar o acesso a tratamento fará a equipe retomar a estratégia adotada durante o auge da crise do vício em bingos, em 1998: as sessões coletivas. “Eu ia para o Hospital das Clínicas num sábado e falava para um galpão cheio, com quarenta, cinquenta jogadores ao mesmo tempo. Lá, a gente tirava dúvidas e ao mesmo tempo observava as pessoas que estavam particularmente frágeis e choravam muito, eventualmente dando a elas prioridade no tratamento.


O psiquiatra Rodrigo Machado, que também atua no Instituo de Psiquiatria da usp, diz que era previsível que as bets causariam um grande problema no país, tanto mais ao se associarem ao futebol, esporte onipresente na vida dos brasileiros. “No espaço de um jogo de uma hora e meia, duas horas, é possível realizar vinte, trinta apostas”, diz ele. O psiquiatra explica que as redes sociais são um convite à dependência, com o mecanismo das curtidas, o uso do algoritmo e a ferramenta de rolagem, que permite deslizar a tela infinitamente.


As principais vítimas do vício estão nas classes C e D. “As apostas só não pegam a classe E porque esta não tem dinheiro para apostar”, diz Hermano Tavares, do Pro-Amjo. Mas o vício é democrático. Em Porto Alegre, a psiquiatra Carla Bicca, coordenadora da Comissão da Psiquiatria das Adicções, da Associação Brasileira de Psiquiatria, lidera uma comunidade terapêutica privada para pacientes da classe alta. Entre os pacientes, há viciados em drogas, em operações financeiras de alta volatilidade na Bolsa e em jogos de aposta. O tratamento vai de duas semanas a meses.


No Reino Unido, epicentro das casas de apostas no mundo, a Clean Up Gambling, ong que defende restrições aos jogos, denunciou a Sky Betting & Gaming por práticas abusivas ao criar perfis detalhados dos apostadores e acumular milhares de dados sobre o comportamento deles, de modo a persuadi-los a nunca desistir de tentar recuperar o dinheiro perdido. O governo britânico não conseguiu comprovar a denúncia, mas, em setembro, advertiu a Sky Betting por processar dados de navegação dos seus usuários sem autorização, o que é ilegal.


A Sky Betting é propriedade da Flutter, o maior conglomerado de casas de apostas online do mundo, e opera no Brasil por meio da Betfair. Em setembro, no mês em que era advertida pelo governo britânico, a empresa anunciou a compra, por 350 milhões de dólares, de 56% das ações da nsx, dona da Betnacional, aquela para a qual Galvão Bueno e Vinícius Júnior fazem publicidade. A Flutter estima que a Betfair fechou 2024 com faturamento de 70 milhões de dólares (420 milhões de reais). E enxerga um futuro brilhante no Brasil, devido a “uma série de características altamente atrativas”: a população de 200 milhões, a onipresença do futebol e gosto por apostas.


Thatiara Fonseca, a corretora que perdeu cerca de 1,8 milhão de reais na jogatina online, nunca apostou na Betfair, porque escolhia jogar apenas na Betano. Naquele dia 29 de dezembro de 2023 em que fez suas duas últimas apostas, o presidente Lula sancionou a Lei das Bets, publicada no dia seguinte no Diário Oficial. Fonseca atravessou todo o seu calvário de dependência numa terra sem lei, com as casas de apostas atuando sem controle e contratando celebridades e estrelas do mundo digital.


Em relação às influenciadoras Tali Ramos e Luana Fernandes, que abriram para ela as “portas do inferno”, como diria Gleisi Hoffmann mais tarde, Fonseca tem um turbilhão de sentimentos, que oscilam entre mágoa, dor e incredulidade. Às vezes, acha que as influenciadoras não sabiam das consequências do que estavam fazendo. Outras, acha que talvez soubessem, sim, e agiram de modo calculado. “O fato é que hoje eu sei que não entendo o ser humano”, diz. E, diante da regulamentação do setor, da correria do governo e do alarido do Congresso para enfrentar os estragos da jogatina, o mercado publicitário online continua adotando a modalidade do “cachê da desgraça alheia”. Sinal de que a desgraça não acabou. 


Colaboraram: Camille Lichotti e Gabriela Sá Pessoa

.Revista Piauí / Janeiro 2025