sábado, 12 de outubro de 2013

Nada a ver com censura prévia - Herson Capri

O Globo - 12/10/2013

O editorial do GLOBO intitulado “A censura prévia às biografias” contém uma postura tendenciosa e belicosa. A começar pelo título. A questão não tem absolutamente nada a ver com censura prévia, uma vez que está claramente prevista na Constituição, tanto que, como diz o próprio editorial, algumas obras estão tendo sua circulação vetada por decisão judicial e isso significa apenas que a Justiça já está fazendo valer a lei.

O texto coloca alguns dos nossos melhores compositores numa “cruzada contra biografias, sob disfarce de defesa da privacidade”. Para o articulista, um grupo se reunir para lutar por uma convicção é apenas um bando de marginais conspirando contra... O quê, afinal? Que se saiba, quem ia contra as reuniões de grupos de intelectuais era a ditadura militar, temerosa de ter seu governo questionado. Não dá para entender a intenção desse editorial ao atacar tão agressivamente uma reivindicação legítima e transparente.
E o ataque segue dizendo que esses artistas passaram de “censurados a agentes da censura”. Senão vejamos: alguns desses artistas foram censurados, sim, tiveram suas obras vetadas ou cortadas pela censura do governo golpista que determinou o fim de uma democracia que estava a pleno vapor, artistas que fizeram parte da resistência aos desmandos do militarismo no poder desde a primeira hora. São pessoas, portanto, que têm histórico para serem, no mínimo, respeitadas em suas opiniões e não tratados como bandidos, como faz o editorial. São pessoas que sabem muito bem diferenciar uma censura a obras artísticas de uma invasão de privacidade ostensiva visando lucro para empresas editoras.

O artigo também acusa essa reunião de artistas, a “Procure Saber”, de “cavalgarem uma esperteza”. Resta saber que esperteza é essa e o que eles ganhariam com isso. O jornalista que escreveu o editorial não percebeu ainda que há causas sem ganho material e que buscam apenas justiça e proteção. Quem procura um ganho material, nesse caso, é justamente o lado oposto, a Associação Nacional dos Editores, que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade visando a modificar a interpretação de cláusulas pétreas do Código Civil para poderem publicar à vontade suas biografias não autorizadas e aumentar o seu faturamento.

Uma biografia não autorizada é apenas a visão de um autor a respeito de uma pessoa geralmente conhecida, uma compilação das opiniões de um escritor que, invariavelmente, adentra o mundo das fofocas. Uma publicação onde se fala o que quer, onde pode haver mentiras, distorções, manipulações e até acusações desprovidas de provas concretas, ao bel-prazer do biógrafo. As comparações com outros países são esdrúxulas. Nos países onde há mais condescendência com esse tipo de publicação, há também uma legislação rigorosa que é aplicada rigorosamente se alguém escrever e publicar algo que afete o biografado na sua honra ou dignidade. Nesses países, os processos que poderão advir de alguma coisa que lese o biografado, na maioria das vezes, redundam em valores monstruosos de multas e ressarcimentos por danos morais. Assim, o escritor e a editora jamais irão publicar algo indevido sob pena de terem que desembolsar milhões de dólares!

Não é o nosso caso. Aqui, os valores ajuizados para esse tipo de dano à individualidade e à privacidade estão muito abaixo do simbólico. Isto é, pode-se escrever qualquer coisa sobre quem quer que seja e, se houver um processo, paga-se uma multa irrisória e parte-se tranquilamente para a próxima biografia espúria, porque se sabe que não vai dar em nada. O editorial termina ainda citando os artigos 20 e 21 do Código Civil como sendo a “base da fúria obscurantista”. Para esse editorialista, o simples cuidado com a vida particular de uma ou duas pessoas vai nos levar de volta aos anos de chumbo da ditadura militar. Simplista, apelativo e extremamente sintomático. Além de corporativista ao extremo.

Herson Capri é ator

2 comentários:

  1. Prezado Herson Capri,

    É com muito respeito ao seu trabalho que escrevo para dar uma posição que, senão da maioria, de grande parte de pessoas que primam pela formação intelectual e cidadã dos indivíduos e, consequentemente, do coletivo.
    Sou formada em História e tenho lido bastante a respeito da polêmica acerca das biografias e biografados. É sim uma questão delicada que deve levar em conta as leis em vigor, mas também que deve ouvir a sociedade em geral. Há, claro, os biógrafos e editoras que querem, apenas, ganhar em cima de seus títulos, estes sendo ou não bem embasados em seu conteúdo. Querem utilizar os nomes dos artistas e personalidades biografados como chamariz, não tendo em vista criar uma obra bem documentada e realista.

    Porém há biógrafos, que, ou por serem fãs, ou por terem curiosidade, ou, simplesmente, por sentirem alguma necessidade, escrevem sobre artistas e pessoas públicas de peso de forma séria. Buscam documentos e argumentos para defender suas hipóteses e teses e tentam fundamentar-se em depoimentos e fotografias e quaisquer outros tipos de fontes de informação. São pessoas em busca de um trabalho sério, que dê algum sentido às suas vidas e às vidas de algumas pessoas em seu redor ou não, mas que escrevem de maneira ética e comprometida. O que fazer com esse tipo de biógrafo e editora? Se o trabalho buscar determinada verdade e se embasar em documentos que a comprovem, por que não respeitá-lo? Só seria possível retratar determinado sujeito se ele aprovasse tais e tais conteúdos? Mas e a liberdade neste caso, como fica? Reduzir à necessidade dos biografados também é restringir o debate. Os artistas do Procure Saber não estão pensando no coletivo, no público, naquelas pessoas que os seguiram a vida toda e que gostariam de saber mais detalhes sobre seus ídolos. Nem estão, aparentemente, interessados na preservação da memória do país, já que, enquanto pessoas públicas e ativas, fizeram parte da história do Brasil, de uma história política ou não, mas estavam presentes em momentos significativos e, por isso, são testemunhas oculares dessa história. Se não pudermos ter acesso a essa história, ou, pior, se só tivermos acesso às histórias permitidas, estaremos vivendo somente uma parte da história, a visão dos biografados.

    Por que em vez de brigar, não pensamos em leis que sejam mais rigorosas com as editoras e biógrafos não autorizados, como nos EUA, por exemplo? Se as multas fossem exorbitantes, todos tomariam mais cuidado ao escrever. E quem não fosse sério, nem se arriscaria.

    Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar, não é mesmo?

    Obrigada,
    Mainá.

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  2. Outro texto sereno e elucidativo sobre o assunto que, muitos, estão tentando transformar em tempestade. E que outros muitos tentam tratar "maniqueisticamente", ou seja, quem é contra (a proibição) é bonzinho e democrata. Quem é a favor é mauzinho e ditador. Portanto, Herson Capri, aceite meus parabéns pelo equilíbrio que você demonstra nesse seu texto!
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    Tentar associar o assunto "biografias não autorizadas" exclusivamente a "censura prévia", a "cerceamento à liberdade", a "ditadura" e a ofensas aos que são contra a divulgação é tão tendencioso quanto inócuo... A divulgação de biografias (não autorizadas) encontra amparo na lei, ora bolas. Enquanto a lei não for modificada, o lero-lero não vai passar de lero-lero. Alegar, simplesmente, que a justiça tem instrumentos para punir eventuais abusos, fofocas, mentiras, ofensas em biografias não autorizadas é ótimo para países que têm justiça célere e rigorosa.
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    Portanto, o caminho - no meu entender - é discutir, trocar opiniões e apresentar sugestões para quem irá decidir (creio que é o Congresso Nacional). Isso tudo, de modo sereno e democrático, ou seja, aceitando opiniões diferentes das nossa, sem fazer cara feia e sem ficar tentando mudar a coisa no grito. Gritar - para obter seja lá o que for - é coisa de bebê.
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