O Globo 18/01/2014
A POESIA DE MANOEL DE BARROS ESTÁ INTERESSADA NAS VERDADES PROFUNDAS, QUE NÃO COSTUMAM TER LÓGICA
Tenho comigo a nova edição da
“Poesia completa”, de Manoel de
Barros (Leya). Ela chega ao mercado
trazendo um poema inédito,
“A turma”, de 2013, e acompanhada
de um box de luxo batizado A
Biblioteca de Manoel, com todos os seus 18 livros
individuais. É uma boa oportunidade para
refletir a respeito de um estigma que pesa sobre
Manoel e sua poesia: o de que ele é um poeta
que só se repete e, mais ainda, de que confunde
poesia com jogo infantil.
“Poesia completa”, de Manoel de
Barros (Leya). Ela chega ao mercado
trazendo um poema inédito,
“A turma”, de 2013, e acompanhada
de um box de luxo batizado A
Biblioteca de Manoel, com todos os seus 18 livros
individuais. É uma boa oportunidade para
refletir a respeito de um estigma que pesa sobre
Manoel e sua poesia: o de que ele é um poeta
que só se repete e, mais ainda, de que confunde
poesia com jogo infantil.
O interessante é que as duas restrições não deixam
de ser verdadeiras. A poesia de Manoel de
Barros tem, de fato, uma marca inconfundível
que se derrama sobre toda a obra e que podemos
chamar, imitando-o, de “manoelês archaico”.
Seus versos são inconfundíveis — assim como é
inconfundível uma imagem do Monte Everest, da
Baía de Guanabara, ou do Grand Canyon. Há
uma marca original — um timbre — que não permite
que ninguém dela se aposse, ou imite, sem
cair na desgraça da cópia fraudulenta. Algo que
vem do fundamento, que é o próprio fundamento,
em uma poesia que não tem pudor algum em
(mesmo elegante e doce) se desnudar.
Mas Manoel não escreve para copiar a natureza,
e sim para reinventá-la. Seu poema inédito,
“A turma”, foi incorporado ao fecho de um livro
antigo, os “Escritos em verbal de ave”, que ele
apresenta como uma “desbiografia” de seu amigo
Bernardo. O poeta não se interessa nem pelo
natural, nem pelo verdadeiro. Está mais empenhado
em distorcer essas duas noções, ultrapassando-
as para que, enfim, a invenção se imponha
como única norma. “Videntes/ não ocupam
o olho/ para ver — mas para transver”, ele nos
diz em um poema antigo.
No inédito “A turma”, Manoel faz uma pergunta
insistente a respeito do ato poético, que sintetiza
assim: “Ele queria mudar a Natureza?” E
responde de modo veemente: “Mas o que nós
queríamos é que a nossa/ palavra poemasse”.
Arrancar das palavras toda relação de utilidade,
todo conteúdo, todo significado. Ficar com a palavra
pura — como um objeto primário. Para, aí sim,
colocá-la em outro lugar, inverter sua posição, experimentar
novos usos. “A gente queria encontrar
a raiz das/ palavras”, escreve. Valorizar o mal comportamento,
obedecer às desordens infantis; em
vez de imitar a natureza, “poemar”, o que é uma
maneira de revirá-la em busca de seu fundo vazio.
Daí da lista de “desobjetos” de
Bernardo constarem coisas como
um “martelo de pregar
água”, um “guindaste de levantar
vento” e um “alicate cremoso”.
Para que servem? Para nada. O
nada — na estética radical de
Manoel — é a matéria da poesia.
Gosta de lembrar do francês
Gustave Flaubert que, numa
carta de 1852, disse que gostaria
de fazer um livro sobre nada.
Mas o nada de Flaubert ainda
não é o nada de Manoel. “Ele queria o livro que
não tem quase tema e se sustenta pelo estilo”, o
poeta nos lembra. Já o seu nada é diferente: “O nada
de meu livro é nada mesmo. (...) O que eu queria
era fazer brinquedos com as palavras. Fazer
coisas desúteis. O nada mesmo”.
Tal atitude pode parecer ora soberba, ora desumana.
Contudo, a delicadeza de Manoel é indiscutível.
E, por detrás de seus jogos verbais, é o homem
com seu grande vazio que se ergue e se presentifica.
Releio “A turma”: é impressionante tanta lucidez infantil
em um homem de idade tão avançada. “Nasci
para administrar o à toa, o em vão, o inútil”, escreveu
certa vez. Será Manoel indiferente aos significados,
ou atento à criação de novos significados?
Estará Manoel só brincando ou,
ao contrário, jogando um jogo
mortal que só adultos ousados se
permitem experimentar?
É uma poesia indiferente à lógica,
e interessada nas verdades
profundas, que não costumam
ter lógica alguma. É um homem
que mistura as espécies naturais
— quando fala, por exemplo,
que o dia está “frondoso em borboletas”.
Não se interessa pela
verdade, mas pelo que ela esconde
de invenção e de provocação. “Poesia é a
infância da língua”, já escreveu também. Poesia da
origem, seus versos apontam para a origem da poesia.
Que começa como um sopro, um tombo, um
engano. Que não tem lugar ou hora para nascer,
precisando só de um poeta que esteja disposto a
lhe oferecer o corpo.
Sua poesia mistura pertencimentos: as palavras
gorjeiam (mas não são os pássaros?). A ordem da
língua é quebrada: elas não gorjeiam “para ele”,
mas “nele” — “elas me gorjeiam”, escreve. À entrada
de seu grande livro, anuncia ainda que tem
Aristóteles como mestre e que se baseia em seus
“impossíveis verossímeis”. Em resumo: Manoel de
Barros faz poesia para inventar o impossível. E,
com isso, alarga o mundo, repuxa as fronteiras do
humano, transforma a alma em elástico. Em vez
da coisificação existencialista do mundo, na poesia
de Manoel são as coisas que falam. A cada verso,
afirma sua diferença e sua solidão, mostrando
o poeta como um menino solitário. “No recreio
havia um menino que não brincava/ com outros
meninos/ O padre teve um brilho de descobrimento
nos olhos/ — POETA!”.
É como diz no “Livro sobre nada”: “O menino de
ontem me plange”. Menino que tem outra versão a
respeito da verdade: “Tudo o que não invento é
falso”. Menino e poeta que, portanto, incomodam
com sua solidão radical, excluindo-se dos grupos
poéticos, das escolas e dos cânones. Excluindo-se
do sensato e do previsível. Não há outra maneira
de ler Manoel de Barros que não seja entregandose
completamente — sem ressalvas, sem suspeitas,
sem interrogações — ao magma de seus poemas.
É preciso “ser” Manoel de Barros para ler Manoel
de Barros. Colocar-se neste lugar maravilhoso
em que a palavra se livra de toda incumbência e
se torna só um jogo. Isso assusta. Isso não parece
poesia. Isso incomoda nossa necessidade de significações
e de explicações. Isso nos torna leves — livres
do peso do mundo podemos enfim, como as
crianças, nos limitar a jogar com ele.
Um verso de Manoel resume: “Com pedaços
de mim eu monto um ser atônito”. Um ser que
prefere as linhas tortas, como Deus. Menino, ele
sonhava em ter uma perna mais curta, para que
todos o olhassem. Não teve a perna mais curta,
teve a poesia. Uns o olham de banda. Outros, a
maioria, se ilumina. Todos o olham. Parece loucura:
“Trabalho arduamente para fazer o desnecessário”,
Manoel nos diz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário