
Revista Piauí | Edição 110 | Novembro DE 2015
O único deputado federal assumidamente
homossexual do país tenta fazer frente à pauta conservadora do Congresso
e sofre cobranças do movimento gay
Adriana Abujamra
Na manhã do último dia 6 de agosto,
numa sala lotada do Senado Federal, uma senhora orava, concentrada.
Perto dela, duas moças – os cabelos compridos, as saias na altura dos
tornozelos e um terço nas mãos – se dividiam entre orações, sorrisos e
cochichos. Rapazes de terno e gravata brandiam cartazes com a imagem de
um bebê sorridente e a mensagem: “Brasil vivo! Sem aborto!” Um garoto
vibrava como se estivesse num estádio de futebol.
“Isto aqui não é um Fla–Flu, já falei! Não é Fla–Flu. Isto aqui é um
debate profundo”, exaltou-se o senador João Capiberibe, do PSB do Amapá,
tentando pôr alguma ordem no ambiente. Ele presidia a audiência pública
do projeto de lei que propõe a legalização do aborto no sistema público
de saúde, organizada pela Comissão de Direitos Humanos do Senado.
Na plateia, ativistas de grupos feministas e defensores da
legalização do aborto estavam em franca minoria diante dos adversários.
Parlamentares ligados a igrejas evangélicas e outros grupos religiosos
se alternavam na ofensiva. Quando chegou sua vez de falar, o deputado
federal Flávio Augusto da Silva, do PSB de São Paulo, partiu para o
ataque.
Católico, escolheu como alvo as feministas e seus aliados.
“Estranha-me que militantes LGBT estejam tão atrelados a essa luta em
favor do aborto, como o deputado Jean Wyllys”, discursou o parlamentar,
mais conhecido como Flavinho. “Tudo isso começou com as feministas e
hoje já foi abraçado por uma outra ideologia. Me estranha esse tipo de
engajamento.” Fez uma pausa e arrematou com uma insinuação: “Aliás, hoje
já sei de onde vêm os recursos para manter todos esses movimentos.”
Talita Victor, uma das assessoras da liderança do PSOL, acompanhava a
discussão. Quando ouviu a referência a Jean Wyllys, avisou-o pelo
celular. O deputado, que estava na sala da liderança do partido, largou
tudo e chegou em minutos à Comissão de Direitos Humanos. Tinha o ar
cansado de quem trabalhara até a madrugada.
Ele foi o último deputado a discursar na audiência. Lembrou que, a
despeito das restrições que a legislação brasileira impõe ao aborto,
permitido apenas em casos de estupro e risco de morte para a mãe,
mulheres de todas as classes sociais do país recorrem ao procedimento de
forma clandestina. “Apesar das declarações, exortações a favor da vida,
contrárias às reivindicações das mulheres, elas continuam praticando o
aborto, gostem ou não. Esse é um problema de saúde pública”, disse o
deputado.
Parte do auditório aplaudiu, mas a maioria protestou. Flavinho quis
retomar a palavra e teve o microfone cortado. Visivelmente contrariado,
juntou suas coisas e abandonou a sala. Wyllys correu atrás do colega
para tirar satisfações. “Por que é que você fez aquele comentário a meu
respeito?”, perguntou, já no corredor, cutucando-o no ombro com o dedo
indicador. Flavinho reagiu: “Não me toque! Não me toque! Isto é um
desrespeito!”
Wyllys estava indignado porque julgava que o colega pusera em dúvida
sua honestidade ao insinuar que ele receberia dinheiro para apoiar as
feministas. Bateram boca. Uma campainha ensurdecedora soou, avisando os
parlamentares de que era hora de se dirigirem ao plenário. Os curiosos
se dispersaram e Wyllys retornou à sala da audiência. Sorriu para fotos
com simpatizantes que ainda estavam ali. Botou a mochila nas costas e já
ia saindo quando topou com um padre que participara da sessão. Ligado à
Arquidiocese de Cuiabá (MT) e estrela emergente da ala conservadora da
Igreja Católica, o religioso Paulo Ricardo de Azevedo Júnior dissera na
audiência que gays, lésbicas e feministas haviam se unido contra as
“instituições naturais da sociedade”.
“E aí, padre?”, Wyllys não se conteve, “Continua explorando os
menininhos? Deixa eles horas a fio segurando cartazes contra o aborto na
porta do Congresso?” O padre não parecia abalado. “Não sou explorador”,
respondeu, sem alterar o tom de voz. Wyllys insistiu: “Padre, vamos
combinar. Pegar os meninos e colocar horas sob o sol é, sim, uma
exploração.” Sem alterar o tom de voz, o padre provocou: “Adolf Hitler
também disse: ‘Vamos falar do aborto. Vamos falar dos judeus.’” Wyllys
reagiu com ironia: “Curioso o senhor falar dos judeus, padre. A Igreja
Católica tem um papel tão importante no antissemitismo, não é mesmo?” O
deputado se afastou sem esperar a resposta. Ainda pôde ouvir as últimas
palavras do religioso: “Deus te abençoe.”
Wyllys deixou o recinto ofegante, acompanhado por três assessoras que
apertavam o passo para segui-lo pelos corredores do Senado. A chefe de
gabinete do deputado, Noemia Boianovsky, avaliou como positiva sua
participação. “É, mas rolou o barraco que eu disse que ia rolar”, ele
ressalvou. “Fica parecendo que o Parlamento só tem uma voz a favor do
aborto”, lamentou a chefe de gabinete. Um grupo de visitantes
interrompeu a conversa para pedir uma fotografia. Wyllys aquiesceu e
mais uma vez sorriu para a câmera.
Quando retomaram o passo, a assessora Talita Victor criticou a
omissão da presidente Dilma Rousseff e do PT em relação ao aborto:
“Dilma falou que aborto não se discute. Os petistas não aparecem.”
Wyllys foi além. “Esse partido tem mais é que acabar mesmo. Está todo
mundo preocupado com as conveniências, fazendo cálculo eleitoral”,
disse, entrando no plenário da Câmara.
Jean Wyllys estreou no Congresso em
2011, e não foi de mansinho. “Meti o pé na porta. Ou, para usar uma
expressão cara aos machistas, botei o pau na mesa. Ou fazia isso ou era
engolido”, disse à piauí durante um almoço no Rio de Janeiro, no final de junho. Até entrar na política, era conhecido como o baiano que participou do Big Brother Brasil,
declarou ser gay em rede nacional e saiu vencedor do programa, com 50
milhões de votos dos espectadores. No dia da posse no Congresso,
parentes de outros deputados se acotovelavam para tirar foto a seu lado.
A imprensa queria saber em primeira mão como Wyllys planejava decorar
seu gabinete. Até então, a referência de político homossexual havia
sido Clodovil Hernandes (PTC-SP), morto em 2009, gay assumido e
celebridade na mídia. Como político, nunca empunhou a bandeira da
comunidade, notabilizando-se por seu gabinete customizado – tapetes
tibetanos, cortinas de voile, luminárias de cristal, além da
inesquecível naja de cobre que servia de pé de mesa e que o deputado
batizara de Marta, em homenagem à ex-prefeita de São Paulo, seu notório
desafeto.
O assédio fez com que Wyllys quisesse evaporar na cerimônia de posse. “Achavam que eu tinha brotado feito cogumelo no BBB.
Foi um folclore. Como se eu não tivesse história.” Para fugir da pecha
de celebridade oca e bicha exótica, o deputado adotou uma postura
aguerrida. Estrategicamente, pleiteou de cara uma vaga na Comissão de
Finanças e Tributações – “majoritariamente masculina e branca, e que no
imaginário destes homens não é assunto para gays”.
Wyllys obteve apenas 13 018 votos e só garantiu uma vaga graças ao
resultado alcançado pela legenda do PSOL. O segundo mandato, no ano
passado, teve um resultado bem mais robusto: foram 144 770 votos.
Transitando com desenvoltura entre artistas, tendo a simpatia de
intelectuais e um expressivo número de seguidores na internet, o
deputado vem chamando a atenção para suas bandeiras: a defesa dos
direitos dos negros e das minorias estigmatizadas, como a comunidade
LGBT, e causas polêmicas, como a legalização das drogas e do aborto.
A bancada religiosa da Casa considera Wyllys uma espécie de
encarnação do Tinhoso, ou, como alguém já o definiu, o “Porteiro do
Capeta”. Wyllys gosta de recorrer à metáfora bíblica do jovem pastor
Davi que enfrentou e venceu o gigante Golias para descrever a correlação
de forças no Congresso: “Eu tenho apenas um estilingue na mão.”
Annus mirabilis dos evangélicos, 2015 foi um marco: pela
primeira vez o grupo conquistou a presidência da Câmara na figura de
Eduardo Cunha. Com 69 deputados federais – dados da Frente Parlamentar
Evangélica (FPE) –, a ala busca garantir posições estratégicas em
Brasília a fim de ampliar sua influência. Dentre suas propostas no
Legislativo, em diferentes estágios de tramitação, há a criação do
Estatuto da Família – que reconhece apenas a união entre homem e mulher
–, a celebração do Dia do Orgulho Heterossexual, a penalização da
heterofobia e da cristofobia.
Marco Feliciano (PSC-SP), o “Vendilhão do Templo”, como Wyllys se
refere a ele, foi alocado no comando da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias em 2013, cargo historicamente ocupado por políticos de filiação
progressista. Pastor da Assembleia de Deus e pré-candidato a prefeito
de São Paulo, Feliciano já afirmou que “africanos descendem de ancestral
amaldiçoado por Noé” e pregou, durante um culto, que Jesus “não foi
feito para ser enfeite de pescoço de homossexual, nem de pederasta, nem
de lésbica”.
Em repúdio à eleição do pastor, Wyllys e outros deputados lançaram a
Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos, espécie de comissão
paralela para esvaziar o poder de Feliciano e dar voz aos dissidentes.
Logo surgiu o movimento “Fora, Feliciano”, que ganhou as redes sociais. O
pastor deixou o cargo após um ano. Embora o PT tenha reassumido o
controle da comissão, hoje presidida por Paulo Pimenta (PT-RS), os
religiosos ainda detêm a maior parte dos assentos.
“A comissão tem presidente, mas não tem tropa. Nós derrubamos tudo
que não interessa à família ali”, decretou Jair Bolsonaro (PP-RJ), com o
punho cerrado sobre a mesa e um sorriso triunfante. O deputado, que
encabeçou a lista dos mais votados em seu estado, ria à larga com um
grupo em seu gabinete em Brasília quando me recebeu. Ao saber do motivo
da conversa, franziu o cenho e afastou as costas do assento da cadeira,
em posição de alerta.
Para Bolsonaro, Wyllys não passa de “um ativista gay com projetos
absurdos que não somam nada para que se valorize a família”. Ele
assegurou que não é contra os homossexuais, contanto que permaneçam
escondidos e sem fazer alarde. “Quer ser feliz entre quatro paredes?
Problema deles. Quero mais que fiquem roucos de tanto uivar de
felicidade com seus parceiros”, disse, rindo. O problema, prosseguiu, é
que a “pauta gay que vivia no armário resolveu mostrar as asinhas”. A
indecência, nos termos do parlamentar, teria começado com o famigerado
“kit gay” preparado pelo Ministério da Educação. (Em maio de 2011, após
pressão do ultradireitista e católico Bolsonaro e da bancada evangélica –
com quem ele costuma votar em bloco –, a presidente Dilma Rousseff
vetou a distribuição do material anti-homofobia nas escolas públicas.)
Quando perguntei sobre o projeto de lei de Wyllys que propõe
regulamentar a profissão das prostitutas, Bolsonaro soltou uma
gargalhada. “Que maravilha! Um pai vai dizer para o outro: ‘Quanto sua
filha está ganhando? Dois mil, só? A minha tira 5 mil.’” O assessor fez
um sinal para que ele encerrasse a conversa. Ao se levantar, o deputado
disparou: “A minoria gay no Brasil agora se julga semideus! Tem que rir.
Ha-ha-ha!”
Antes da chegada de Wyllys à Câmara, a senadora Marta Suplicy já
defendia os direitos da comunidade LGBT havia muito tempo. Recebeu desse
grupo, inclusive, a alcunha de “Nossa Senhora das Bichas”. Mas sua
figura não provocava tanta rejeição no Congresso. “Marta é friendly,
não lésbica. Isso muda tudo”, observou Wyllys. “No meu caso, a pauta
não é só política. É a minha vida que está em jogo. Então é óbvio que
vou me jogar com muito mais coragem.”
“Concentração. Câmera. Ação! Poemaria.
Cena 1. Take 1.” Era sábado de sol e Jean Wyllys estava em um estúdio
em São Paulo para gravar uma participação no documentário Poemaria. Aos 41 anos, o parlamentar adotou o cabelo comprido e a barba rala que o deixam parecido com Jon Snow, personagem da série Game of Thrones,
da qual é fã. Usa um escapulário com as imagens de Jesus Cristo e Nossa
Senhora, e uma pulseira de contas de candomblé. Vestia calça jeans e
bata branca, decotada o bastante para deixar visível a tatuagem que lhe
ocupa todo o peito: “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome.” São
versos de um poema de Vladimir Maiakóvski, que Caetano Veloso incluiu
numa canção em 1977. “Tem muito a ver com minha vida”, comentou.
O projeto Poemaria vem registrando personalidades de
diferentes áreas falando de poesia. O diretor Davi Kinski, um rapaz
ruivo, magro e alto, serviu um copo de vinho tinto para seu entrevistado
e pediu que ele narrasse de forma sucinta sua trajetória. Wyllys
encarou a câmera e respondeu: “Sucintamente é difícil. Como diz a letra
de Belchior: Qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa.”
A seguir, fez um breve relato.
Jean Wyllys de Matos Santos nasceu no dia 10 de março de 1974.
Tivesse escolha, Inalva de Matos Santos, já mãe de três meninas, teria
determinado outra data para o rebento vir ao mundo. “Perdi o último
capítulo da novela pra parir o Jean”, contou, rindo, em uma tarde de
julho. Miúda, com o rosto vincado pelo sol e pelo tempo, os cabelos
muito pretos presos por grampos, ela me recebeu em sua casa em
Alagoinhas, no interior da Bahia, a 93 quilômetros de Salvador. Sentada
no sofá da sala, balançava os chinelos sem tocar os pés no chão. E
contou que na Baixa da Candeia, na periferia rural da cidade, televisão
era artigo raro, só encontrado na casa de um vizinho. Era lá que a
família se aboletava para acompanhar os folhetins.
“Se não fossem aqueles breves instantes de ficção e música à porta de um vizinho”, escreveu Jean Wyllys em seu livro Tempo Bom, Tempo Ruim,
“talvez minha mãe não tivesse suportado a vida miserável e sem graça
que vivia.” Mainha – termo como os baianos se referem à mãe – era muito
prática. “Melhor não alimentar sonhos para não se frustrar”, repetia,
feito mantra, para os seis filhos.
Já o pai, José Dias dos Santos, sonhava grande. Ganhava uns trocados
pintando carros e se imaginava ao volante do luxuoso Aero Willys, sedã
que deixou de ser produzido no comecinho da década de 70. Seu José não
tinha cacife nem para pagar as contas, mas deu um jeito de se aproximar
do automóvel, ou pelo menos do nome dele. Descartou o Aero, pegou o
Willys, acrescentou um y e batizou o primeiro filho varão com o nome dos
sonhos. Jean foi ideia de uma tia, que se inspirou num galã de
fotonovela.
Extrovertido, seu José varava noites entoando canções de Nelson
Gonçalves e Waldick Soriano. “Solta um lá maior”, dizia aos companheiros
de botequim, onde invariavelmente se embriagava. Voltava para casa de
cara cheia e carteira vazia.
Wyllys tinha 6 anos quando sentiu
pela primeira vez que era diferente. A pedido da mãe, então lavadeira
(depois ela também trabalhou como empregada doméstica), o menino foi até
a venda do seu Deraldo. “Me dê seis pães”, disse, na ponta dos pés, os
olhos na altura do balcão, caprichando na concordância. Um sujeito, com
um copo de pinga na mão, escrutinou o moleque e perguntou alto, com
ironia. “Seis pães? Você é estudado ou veado?”
A freguesia se fartou de rir. O menino voltou para casa com um aperto
no peito. Desde essa época, ele passou a ouvir toda sorte de
humilhações – “Pare de rebolar!”, “Maricas!”, por aí vai. Dona Inalva se
“enraivava dessas manias idiotas do povo”, conforme me disse, e saía em
defesa do rebento.
E seu José? “Meu pai nunca teve apreço por mim por causa do meu
jeito. Tinha vergonha”, disse Wyllys. “Fazia planos para meu irmão
George, nunca pra mim.” George é hoje capitão da Polícia Militar em
Salvador. Manca ligeiramente de uma perna, resquícios de um acidente de
carro. E, acanhado, cora ao falar.
Os filhos de dona Inalva e seu José frequentaram as Pastorais da
Juventude e as Comunidades Eclesiais de Base, movimentos criados por
padres progressistas influenciados pelo marxismo e pelo Concílio
Vaticano II, com “opção preferencial pelos pobres”. E aprenderam que a
desigualdade social não deveria ser considerada natural. “Foi no
envolvimento com a Igreja Católica que minha vida começou a ser
politizada. A Igreja me deu acesso a livros e a um conhecimento que
minha família e mesmo a escola que eu frequentava não me permitiam”,
falou Wyllys.
Aos 10 anos, o menino e o irmão George foram trabalhar nas ruas de
Alagoinhas, vendendo algodão-doce, calendários do Sagrado Coração de
Jesus e livros de ervas medicinais. “Jean já nasceu velho. Arrimo de
família, sempre incumbido de algo”, disse Firmiane Venâncio, colega do
ensino médio e hoje defensora pública em Salvador.
Mas sobrou uma brecha para pecados menores. Provar o vinho da
consagração, mastigar a hóstia e surrupiar uns trocados da caixa de
ofertas da igreja. Logo batia o remorso no pequeno infrator. Wyllys
publicou na rede, em setembro, um vídeo contando esses pequenos delitos
em depoimento à campanha EuConfesso.org, contra a redução da maioridade
penal.
O menino era encarregado de ler a Bíblia nas missas e desempenhava
papéis de destaque nas montagens teatrais realizadas pela igreja. Não
tardou e foi convidado a apresentar um programa diário na Rádio Emissora
de Alagoinhas, sucesso na zona rural da cidade. Às seis da tarde em
ponto, iniciava com a Ave Maria de Franz Schubert. Finda a música, informava as pautas da paróquia e lia trechos do Evangelho.
Aos 13 anos, Wyllys passou num concurso e entrou na Caixa Econômica
como aprendiz. “Sabe de uma coisa, filha? Uma vizinha falou um negócio
que até hoje fico magoada. Que Deus a tenha”, disse dona Inalva, fazendo
o sinal da cruz e olhando para o alto antes de prosseguir. “A criatura
disse bem deste jeito: ‘Quem devia ter vencido este concurso era meu
menino, e não o veado filho daquela esmoler.’ Ah, fui pobre, mas nunca
fui esmoler! Queria que ela estivesse viva para ver até onde Jean
chegou.” Dona Inalva estudou só até a 3ª série; o marido, até a 4ª.
Sempre se achou “burra”: “Não entrava nada na minha cabeça.” “Mas Jean
era só nota boa”, acrescentou.
Um ano depois, o primeiro varão conseguiu uma disputada vaga para
cursar o ensino médio técnico na Fundação José Carvalho, entidade
filantrópica de excelência em educação com várias unidades de ensino
fundamental, técnico e rural. Wyllys foi aprovado para a unidade de
Pojuca, na região metropolitana de Salvador, a 46 quilômetros de
Alagoinhas. O espaço era enorme e parecia ainda maior para o menino que
até então vivia numa casa de um único cômodo e sem água encanada. A
escola funcionava em esquema de internato, e os alunos só voltavam para
casa de seis em seis meses. Os parentes podiam visitá-los nos fins de
semana, mas os pais de Jean Wyllys não tinham dinheiro para a condução e
só apareciam raramente. O garoto varava a madrugada estudando e dormia
no máximo quatro horas por noite, hábito que mantém até hoje.
“Jean sempre foi efusivo. Jamais
reprimia sua sexualidade”, contou Firmiane Venâncio, a colega na
Fundação. O baiano iniciou sua vida sexual no começo dos anos 90. Quando
entrou no colégio era virgem, porém já tinha clara sua orientação
sexual, o que o transformava em alvo constante de chacota. Mas tinha
muitos aliados, principalmente as amigas. “Toda mulher que se preze tem
um veado de estimação”, costumava dizer.
Rapazes dormiam com rapazes, moças com moças, essa era a regra.
Muitos colegas se recusavam a compartilhar o quarto com um gay e bolavam
estratégias para que o jovem implorasse para sair. Uma delas era fazer
barulho à noite, batendo pés e mãos na parede, para atazaná-lo durante o
sono.
Às vezes Wyllys partia para o confronto: “Venha cá! Qual é a sua?” Em
outras, reagia com certo desdém desafiador. “Sou gay mesmo, e daí?”,
perguntava, com as mãos na cintura, dando uma sonora gargalhada. Um
colega tímido, gordo e gay escudava-se no amigo. “Eu já era uma bicha
assumida e me impunha. Ele não.” Foi na companhia de Klebson e de mais
dois amigos que Jean Wyllys se aventurou pela primeira vez na noite gay
da capital baiana. Anos mais tarde, Klebson cometeria suicídio.
Concluído o curso, e com um certificado de programador de
computadores, Wyllys foi morar em Salvador. “Eu tinha que sair de
Alagoinhas. Era impossível viver plenamente minha homossexualidade lá.”
Na primeira tentativa do vestibular, ele passou na Universidade Federal
da Bahia, a UFBA, para cursar jornalismo.
“Naquela época não tinha cota, entrar aqui não era fácil”, contou
Wilson Gomes, que foi seu professor de semiótica na UFBA, onde ensina
teoria da comunicação até hoje. “Só dava gente branquinha, caras de
Curitiba e classe média.” Jean Wyllys trabalhou para os principais
jornais soteropolitanos, nos quais escreveu sobre quase todos os
assuntos, menos futebol. Foi professor de cultura brasileira e teoria da
comunicação em faculdades privadas e concluiu mestrado em letras e
linguística na UFBA. Estudou a narrativa de presidiários que
sobreviveram ao Massacre do Carandiru em 1992, quando 111 presos foram
assassinados pela Polícia Militar paulista, e planejava seguir a mesma
linha de pesquisa para o doutorado. Não conseguiu.
“Jean ficou frustrado, realmente desiludido, porque seu projeto de
doutorado não foi aprovado”, revelou Eneida Leal Cunha, que foi sua
orientadora de mestrado na Bahia e hoje leciona na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. A professora disse que o
ex-aluno era inteligente, mas não talhado para a vida acadêmica. “Não
tinha entusiasmo como pesquisador. Acredito que agora ele abriu
horizontes e se encontrou muito mais.” Os dois nunca mais se viram, mas
ela votou no ex-aluno nas duas últimas eleições.
O baiano costuma dizer que se inscreveu no Big Brother
com o intuito de fazer uma investigação etnográfica do programa para
entender sua engrenagem. Numa entrevista concedida na ocasião, enumerou
mais duas razões: queria impulsionar sua carreira literária e quebrar a
rotina. E, citando Raul Seixas, disse à jornalista: “Minha vida estava
correta demais, sem graça, estava mais ou menos no trono do apartamento
esperando a morte chegar.”
Jean Wyllys sempre teve interesse por televisão, fosse como noveleiro
assumido, fosse como estudioso da cultura de massa. As telenovelas, ele
gosta de dizer, podem ser mais relevantes politicamente do que imagina
“a dita nata da intelligentsia”. Para reforçar sua tese, recorre ao
pensador francês Jean Baudrillard: “Se milhões de pessoas trocaram um
comício por um último capítulo de novela, isso não pode ser considerado
um mero equívoco.”
Com a ajuda de dois colegas, o então professor universitário fez um
vídeo caseiro no quarto de casa com a estante de livros ao fundo e
enviou para a Rede Globo. Foi aceito e não contou a novidade nem para os
mais próximos, já que uma das cláusulas do contrato exigia sigilo. Mas
teve que se abrir com a irmã Josiane, com quem dividia o apartamento em
Salvador.
“Ninha, sente aqui”, falou, mostrando o lugar ao seu lado no sofá.
“Quero que você saiba que não vou te deixar desamparada.” Josiane
percebeu que o irmão ia para não mais voltar e chorou. “Ele me abraçou e
chorou também. Jean sempre quis uma vida diferente. Não ficou em
Alagoinhas, não ia ficar em Salvador. Dizia que se não fosse aprovado no
doutorado iria embora para o Rio ou para fora do país. Pronto, e foi”,
ela me disse.
Dona Inalva tomou um susto com a notícia e com a multidão de curiosos
e jornalistas plantados na porta de sua casa. “Não gostei quando Jean
falou assim, sabe né? Da vida dele na televisão”, lembrou, referindo-se
ao fato de o filho ter dito em rede nacional que era gay. Não que fosse
novidade, ele mesmo já lhe contara havia muito tempo. Ela chorou quando
soube, depois aceitou. Mas agora não precisava fazer tanto escarcéu e
dar munição ao diz que diz do povo. O alívio veio na fala de um
compadre: “Dona Inalva, a senhora deve estar muito orgulhosa. Seu filho
foi mais homem do que muito homem que conheço.”
Nos dias de paredão – quando os telespectadores votam para eliminar um dos participantes da casa do BBB
–, Alagoinhas acompanhava o programa numa grande tela armada na praça
central da cidade. O Grupo Gay da Bahia (GGB), no qual Wyllys começou
sua militância, designou duas pessoas para ficar o dia inteiro votando
pelo telefone no conterrâneo. O advogado Fernando Quaresma, atual
presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, fez o
mesmo, escondendo o telefone embaixo da mesa enquanto atendia seus
clientes.
Depois de 79 dias de confinamento, Wyllys vestiu uma camiseta com a
estampa de são Jorge – seu padroeiro – e sentou em frente à televisão,
ao lado da outra finalista, a ex-miss e hoje atriz Grazi Massafera. Na
tela, Pedro Bial fazia suspense. A cada palavra, o “professor”, como era
tratado no programa, apertava com mais força a mão de Grazi. Quando
Bial anunciou o vencedor, o baiano começou a chorar. “Eu não acredito!
Não acredito”, repetia, abraçado à colega.
Em Alagoinhas, uma multidão o aguardava gritando seu nome. A maioria
para celebrar, mas muitos com a esperança de conseguir uma lasca do
prêmio de 1 milhão de reais – desde gente com conta de luz atrasada até a
mãe de uma debutante que vislumbrava a oportunidade de pedir dinheiro à
nova celebridade para a festa da filha.
Dona Inalva achou aquilo tudo um despropósito. “‘Ave-Maria!’, eu
dizia, ‘mas nem eu ainda fui ajudada.’” Logo Wyllys presenteou a mãe com
a casa térrea e espaçosa em que vive hoje com três de seus filhos.
“Mainha passou a vida reclamando da outra casa, e agora só se queixa por
ter saído do antigo bairro e de perto dos irmãos dela”, lamentou o
deputado, mais terno que zangado.
O potencial eleitoral do ex-BBB
entrou imediatamente na mira de políticos, e os convites pipocaram. Foi
cortejado pelo conterrâneo Antônio Carlos Magalhães Neto, do DEM, na
época deputado federal e hoje prefeito de Salvador. Depois veio Aloizio
Mercadante, atual ministro da Educação de Dilma Rousseff. Wyllys tinha
sido “soldado vermelho” na adolescência e era eleitor do PT desde 1994.
Mas não aceitou.
A terceira e derradeira tentativa partiu de Heloísa Helena, então
presidente do PSOL e hoje na Rede, de Marina Silva. A ironia é que
Heloísa e Wyllys militam em campos opostos na questão do aborto.
Categórica, na discussão sobre o tema em agosto, ela afirmou que “nem
dependurada em pau de arara com sangue saindo pelos ouvidos” aprovaria a
ampliação da legalização da interrupção da gravidez. Por ocasião do
convite, porém, tais divergências ainda não tinham vindo à baila e o
baiano aceitou. “Pensei: se três pessoas de diferentes partidos me
convidaram, é porque tem um recado aí”, ele disse.
Os dois irmãos mais novos de Jean estavam em casa no dia em que fui a
Alagoinhas. A semelhança física entre eles é enorme. Ricardo Matos
Santos – estudante de direito e “fanático por Lula” – apontou
coincidências entre as histórias do irmão e do ex-presidente: filhos de
pai alcoólatra e mãe lavadeira, oriundos da periferia e da pobreza.
“Lula expandiu as políticas públicas para os alijados de direitos. É o
que Jean busca quando trata das questões dos deficientes, da comunidade
LGBT, das mulheres e dos negros.” Dos 513 deputados, prosseguiu o irmão,
“não tem um que se compare ao grau intelectual de Jean”.
Rômulo Matos Santos, formado em letras e professor de uma escola
municipal, fez questão de frisar que a mobilidade social da família se
deu graças aos estudos de Jean, e não a seu ingresso na política. “O
fato de ele ter estudado, isso sim puxou a gente. Jean foi nossa
referência, nosso carro-chefe.”
Dona Inalva estava mais entretida com as fotografias do álbum que
tinha no colo do que com a conversa. “Não sei muito de política, os
meninos é que sabem. Às vezes eu vejo o jornal na tevê, mas durmo. Pra
Brasília fui só uma vez, e a pulso. Eles botaram Jean lá no céu”, disse,
referindo-se aos elogios feitos pelos colegas de chapa do PSOL.
Seu José morreu em 2001 de câncer. Não teve a chance de ver o filho chegar tão longe.
O sábado era de céu limpo em São
Paulo. Fogos de artifícios celebravam o Dia de Santo Antônio. Dentro do
estúdio, Jean Wyllys finalizava o breve relato de sua trajetória. Enfim,
respirou fundo e, numa tacada só, recitou o poema Cântico Negro, do escritor e poeta português José Régio: Não,
não vou por aí! Só vou por onde/Me levam meus próprios passos…/Se ao
que busco saber nenhum de vós responde/Por que me repetis: “Vem por
aqui!”? Maria Bethânia declama o poema em muitos de seus shows.
Despediu-se da equipe do documentário Poemaria e foi para o
quintal da produtora esperar o carro que o levaria ao hotel. De pé e com
uma xícara de café na mão, contou que finalizava um romance cujo tema
seria a morte. “Não tenho pretensões de entrar no panteão da
literatura”, avisou.
Não será sua estreia na ficção. Um de seus livros, Ainda Lembro, publicado logo após o BBB,
vendeu muito, mas também foi massacrado pela crítica. “Sabe maldade de
bicha cruel? Então: o jornalista Artur Xexéo acabou comigo. Professou
que eu ia desaparecer no mês seguinte e ninguém mais iria ouvir falar de
mim. Ah, querida. O tempo, nada como o tempo.”
O carro chegou. Noemia Boianovsky, sua assessora, sentou-se na
frente. Jean e eu nos aboletamos no banco de trás. Quando o motorista
deu a partida, ouvimos umas batidinhas no vidro. Era a atriz Guta Ruiz,
que havia chegado para gravar e correu para falar com o deputado ao
saber que ele estava indo embora: “Jean, torço por você. Estamos
juntos.” Ele segurou as duas mãos dela. “Obrigado, amada. Você é linda.”
O carro partiu e Wyllys espiou em silêncio o cair da tarde pela janela.
“Brasília é um turbilhão, tantas guerras, tantos embates e demandas. É
emocionalmente desgastante. Preciso dar um tempo das pessoas, do corpo a
corpo. Gosto de ficar em casa. Leio, vejo tevê, curto o silêncio, a
solidão. Choro. Sinto falta de namorado, da família.”
A assessora atalhou a conversa, lendo em voz alta as notícias no celular. “Saiu até no El País
sobre a cruzada dos evangélicos contra a palavra gênero na educação.”
“Tão estúpidos”, ele lamentou. “São capazes de tirar a palavra gênero de
um projeto que trate de gêneros alimentícios. É uma desgraça.”
O Congresso passa por uma espécie de “generofobia”. Basta que o termo
apareça no texto de qualquer projeto que a bancada religiosa já se
ouriça. No ano passado, depois de muita pressão, foi suprimido do Plano
Nacional de Educação (PNE) o trecho que assegurava o combate à
discriminação por gênero e orientação sexual nas escolas. O mesmo embate
tem se repetido nas esferas municipais e estaduais. O lobby religioso
alega que a expressão “ideologia de gênero” deturparia o conceito de
homem e mulher, que é dado ao nascer, e não escolhido a posteriori.
“Ideologia de gênero, o que é isso? O camarada vai decidir depois se é
menino ou menina? É muita bandidagem”, vociferou o pastor Silas
Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, em vídeo
publicado na internet quando o PNE era discutido em Brasília. Segundo
Wyllys, Eduardo Cunha, que ele chama de “aquele sacripanta”, costuma
barganhar com os deputados. Promete aprovar seus projetos, contanto que
retirem qualquer referência a gênero do texto. “Isto tudo me dá um
cansaço. Vontade assim de deitar e dormir”, ele disse.
Ao telefone, Boianovsky tinha a voz preocupada. O parlamentar quis
saber o motivo. O estudante Rafael Melo, de 14 anos, havia sido
assassinado naquela manhã em Cariacica, no Espírito Santo, a pauladas.
Tudo levava a crer que a motivação do crime era homofóbica. A chefe de
gabinete sugeriu que o deputado aguardasse maiores informações antes de
se manifestar. A prudência se justificava. Em dois crimes semelhantes, a
despeito de os fatos indicarem motivação homofóbica, a polícia concluiu
que um dos jovens tinha se matado e o outro fora vítima de latrocínio.
“Ao fim e ao cabo, a versão final é a da polícia. Por isso não quero
esse desgaste. Porque quando a versão oficial saiu esses
fi-lhos-da-pu-ta” – continuou, aumentando o volume da voz –
“desmoralizaram a gente. ‘Tá vendo? Se vitimizando! Tá vendo? Pra ele é
tudo homofobia!’ Segundo esses imbecis, os gays querem privilégio. Mas
para descobrir os assassinos e fazer justiça, tem que reconhecer a
motivação homofóbica.”
Poucas horas depois a notícia da morte do jovem foi postada no
Facebook do deputado: “Independentemente do que pode ter motivado esse
crime abominável, estamos solidários com a família e os amigos do
estudante Rafael Melo e atentos aos rumos da investigação.”
Chegamos ao hotel. Em pé, na calçada, Wyllys contou que teve um
ataque de pânico um ano atrás, quando soube do caso de Alex, de 8 anos,
que vivia em Mossoró, no Rio Grande do Norte. O menino apanhou tanto do
pai que teve o fígado dilacerado e morreu. Motivo? Alex gostava de dança
do ventre e de lavar louça, a surra era para que tomasse jeito de
homem. “Vi minha percepção distorcer. Corri para a frente do espelho,
meu rosto parecia desfigurado, achei que estivesse tendo um derrame.
Misturou todos os meus temores, essa notícia me… não gosto de lembrar.” O
deputado fez uma pausa e chorou. “Desculpe. Me emociona. Esse menino
provavelmente passou pelo processo que eu e tantos outros passamos e
passarão. De humilhação, xingamento e insulto.”
A assessora o chamou. Faltava pouco para o próximo compromisso, um
debate sobre Aids. Jean Wyllys sentou-se ao lado da janela do quarto,
observou a cidade iluminada e cantou, a capela, a canção Encontros e Despedidas, de Milton Nascimento e Fernando Brant, falecido no dia anterior. Tem gente que chega pra ficar/Tem gente que vai pra nunca mais…
O vídeo foi postado em sua página no Facebook.
Em 2005, ano em que venceu o BBB,
Jean Wyllys foi um dos convidados de honra da Parada do Orgulho LGBT em
São Paulo, que também contou com a presença de vários políticos, do
então prefeito José Serra à ex-prefeita Marta Suplicy. Wyllys desfilou
no carro abre-alas, foi ovacionado e participou de todas as paradas
seguintes até 2014, mas não deu as caras este ano. “Não recebi convite
especial dos organizadores. Entendi que eles não me queriam.” Ele
atribui o gelo às críticas que tem feito ao movimento, que em sua
opinião perdeu o caráter político e reivindicatório para se contentar em
ser um encontro festivo.
“Esqueceram de chamar o único deputado declaradamente gay? Ah, tem uma historinha bem ardiiida
aí!”, disse Laerte Coutinho, em sua casa, esticando as pernas sobre o
sofá. A cartunista, que há seis anos assumiu em público sua identidade
feminina, lembrou um episódio. As palavras de ordem da parada de 2014
fariam uma menção expressa ao projeto de lei João Nery (nome de um
transexual que nasceu mulher). De autoria de Jean Wyllys e da deputada
Érika Kokay (PT-DF), o projeto assegurava aos transexuais o direito de
ter o nome alterado nos documentos e autorizava a cirurgia de mudança de
sexo pelo SUS, o Sistema Único de Saúde. De última hora, os
organizadores do evento recuaram, evitando imprimir ao evento uma
conotação política. “Foi uma espécie de passada de perna”, comentou
Laerte.
A sede da Associação da Parada do Orgulho LGBT funciona no 2º andar
de um prédio na praça da República, na capital paulista. O presidente da
entidade, Fernando Quaresma, é um homem bastante corpulento, de barba
rala, óculos e argolas nas orelhas. Em sua sala, entulhada de caixas
vazias e pilhas de pastas, perguntei-lhe por que o deputado não havia
sido convidado para a edição deste ano. Quaresma apontou o calhamaço de
papéis a seu redor. “Ai, amada, você está vendo, é tanta correria.”
Marta Suplicy teria recebido um convite formal? “Claro. A Marta é uma
figura histórica na associação. Desde a primeira parada, ela sempre
esteve junto. Mas, olha, não fui eu quem convidou ela”, emendou,
eximindo-se da responsabilidade.
As arestas de Jean Wyllys com o movimento LGBT vão muito além da
Parada. “Criatura! Não trouxe guarda-chuva?”, quis saber o antropólogo
Luiz Mott, apressando o passo para não se molhar ao abrir o portão,
assim que ouviu as badaladas do sino que funciona como campainha.
Localizada no Barris, Centro de Salvador, sua casa abriga dezenas de
coleções: de carrinhos a uma infinidade de santos. Com o cabelo grisalho
cortado rente, Mott usa barba e brinco de argola. Sentamos em duas
poltronas próximas à janela, ao lado de Luluca – um papagaio que volta e
meia dava pitacos na conversa. O antropólogo começou a se apresentar,
referindo-se a si próprio na terceira pessoa.
Mott é professor da Universidade Federal da Bahia, fundador do Grupo
Gay da Bahia, que surgiu em 1980 e é considerado um dos pioneiros na
defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil. Seu primeiro
contato com Jean Wyllys ocorreu no início dos anos 90, quando o jovem
era estudante na mesma universidade em que ele lecionava. Os dois se
esbarraram algumas vezes em reuniões do GGB e em festas – Wyllys,
segundo o entrevistado, teria se interessado por ele.
“Não me assediou porque eu era comprometido na época. Me deixa
orgulhoso saber que despertei interesse homoerótico no Jean Wyllys”, o
professor comentou, retomando a primeira pessoa. Para ele, a entrada do
conterrâneo no Congresso representou um ganho para o movimento LGBT: o
fato de ele ser um gay culto, inteligente – e ainda por cima boa pinta –
tem ajudado a aumentar a autoestima de um grupo marginalizado.
“Noto um crescimento nos discursos dele. Um traço da performance
midiática de Jean Wyllys é citar letras de música. Eu, particularmente,
acho isso muito pobre”, comentou, espalmando a mão sobre o peito. “Mas
ultimamente ele tem citado mais autores de relevância dentro do mundo
acadêmico, o que demonstra capacidade de aprendizado e acúmulo de
experiência”, ponderou. Dos elogios (salpicados de senões), Mott logo
passou às críticas abertas.
São basicamente três as ressalvas do antropólogo em relação ao
deputado. A primeira é que Wyllys age com “estrelismo de
franco-atirador”, tomando iniciativas no Congresso sem dialogar com a
base LGBT. A segunda é o “infeliz” retrato do deputado como Che Guevara,
na capa da revista Rolling Stone em 2011. O revolucionário
cubano, apesar da aparência atraente e da aura revolucionária, era
homofóbico. “No auge do poder de Che em Cuba, muitos gays foram
deportados, presos, perseguidos e assassinados”, disse Mott. Fez uma
pausa, olhou feio para o papagaio que falava cada vez mais alto e pediu
ajuda à empregada: “Narcisa, prenda a Luluca, por favor.”
Sem o louro na sala, o professor partiu para a terceira crítica: “Um
gay assumido ter apoiado a reeleição presidencial é um grande equívoco.”
E passou a listar, com os dados na ponta da língua, provas de que Dilma
Rousseff não teria se mostrado uma aliada das causas LGBT. Dentre elas,
seu recuo quanto à distribuição de material educativo contra a
homofobia, o descaso na prevenção à Aids e a escalada de crimes contra
homossexuais durante o seu governo.
Diante de um copo de suco de lima-da-pérsia, Mott lamentou que Jean
Wyllys não o tenha aceitado como amigo no Facebook, mesmo depois de
reiterados pedidos. “O que acho um descaso. Afinal das contas, Luiz Mott
é o decano, o mais antigo do movimento homossexual brasileiro. Merecia
um pouco mais de acolhimento por parte de Jean Wyllys, você não acha?”,
quis saber, voltando a empregar a terceira pessoa.
Nos últimos anos houve avanços para o
movimento LGBT no Brasil: em 2011, o Supremo Tribunal Federal
reconheceu juridicamente a união estável homoafetiva, e o Conselho
Nacional de Justiça obrigou todos os cartórios do país a cumprir a
decisão do STF, ou seja, realizar as uniões estáveis de todos os casais
do mesmo sexo e fornecer a certidão de registro delas. Wyllys considera
as decisões relevantes, mas acredita que o Congresso Nacional deveria
garantir essas conquistas numa lei. “Nós não temos que ficar com a união
estável enquanto o restante da população tem direito ao casamento
civil. Isso seria uma cidadania de segunda categoria”, disse em
entrevista à Folha de S.Paulo.
Representantes da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais) defendem punições severas para
manifestações de homofobia. Já Wyllys sustenta que casos de injúria e
atos discriminatórios não violentos poderiam ser passíveis de penas
socioeducativas, para ele mais eficazes do que a cadeia. “Não acho que
tem que mofar na prisão só porque me chamou de veado. Este não é um
crime hediondo indefensável.”
A pauta costuma causar cizânia na comunidade. Em resposta aos que o
criticam por isso, Wyllys afirma que não tem medo de se contrapor. “Não
sou deputado, estou deputado. Se não quiser, não vota em mim.” E conclui
citando Muito Romântico, de Caetano Veloso: Sou o que soa, eu não douro a pílula.
Até quem admira seu estilo acha que nem sempre o parlamentar se sai
bem. Militante há trinta anos e membro da ABGLT, Toni Reis imagina o
grau de solidão e estresse implicado em ocupar uma cadeira no Congresso e
ser vítima constante de difamações nas redes sociais, como ocorre com
Wyllys. Ele elogia o caráter “franco e sincero” do deputado, mas pondera
que essas qualidades no Congresso possam se converter em defeitos.
“Jean é oito ou oitenta, e na política muitas vezes é necessário dar um
passo atrás para depois avançar.” Ele acha que Wyllys fala muito e tem
dificuldade de ouvir. “Acaba fazendo política mais para fora do que para
dentro.”
O seu juiz já falou/Que o coração
não tem lei/Pode chegar/Pra celebrar/O casamento gay/Joga arroz/Joga
arroz/Joga arroz/Em nós dois. Em apoio à campanha Casamento Civil
Igualitário, idealizada por Wyllys, no final de maio de 2013 os
Tribalistas – trio formado por Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos
Brown – gravaram a canção Joga Arroz.
Com trânsito desimpedido no meio artístico, o deputado sabe se valer
disso e impulsionar suas bandeiras. Diferente da esquerda que lutou
contra a ditadura ou militou nos anos 80 – para a qual o lema “O povo
não é bobo, abaixo a Rede Globo” faz todo o sentido –, Wyllys não vê os
grandes meios de comunicação como vilões, mas como uma arena rica a ser
disputada. Comanda Cinema em Outras Cores, no canal GNT, em que
apresenta filmes com temática LGBT. Costuma aceitar convites para
participar de programas de auditório, do Esquenta, de Regina Casé, ao SuperPop, de Luciana Gimenez. Sua trajetória é também tema do documentário #Eu, Jean Wyllys, dirigido pelos jornalistas Carlos Juliano Barros e Caio Cavechini, com estreia prevista para o ano que vem.
“Este sujeito é um fenômeno político”, exclamou o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso quando soube que suas netas cariocas tinham
votado no jovem do PSOL. Instado a falar sobre o “fenômeno”, disse, por
e-mail, que o respeita sobretudo por defender questões contemporâneas,
como a legalização do aborto e o uso de drogas, sem se escudar em
hipocrisias. “Pode-se concordar ou não com as suas posições, mas o fato
de tomá-las com franqueza faz de Jean Wyllys uma voz a ser respeitada e
seguida, sobretudo pelos mais jovens.”
Wyllys é participativo nas comissões da Câmara que integra, mas
raríssimas vezes pede a palavra no plenário. Em vão seus
correligionários insistem para que ele ocupe a tribuna. Quando algum
parlamentar faz um discurso que o desagrada, ele berra, ri alto e sai
para tomar café. Nos momentos de marasmo, senta ao lado do líder do
PSOL, o deputado Chico Alencar (RJ), também de formação católica, e
cantarola uma música sobre a partilha de pão, aprendida nos tempos da
Pastoral. Mas a atividade a que mais se dedica enquanto está no plenário
é alimentar as mídias sociais.
“A audiência da TV Câmara é menor do que a minha no Facebook. Então,
se é para falar para o grande público, falo nas redes sociais e na
imprensa, e não no plenário, onde ninguém se escuta”, justificou-se. No
último dia 28, Wyllys ignorou a própria regra e revidou o ataque de João
Rodrigues, do PSD de Santa Catarina. Discursando em defesa da revogação
do Estatuto do Desarmamento – a favor, pois, de um afrouxamento da lei
que restringe o porte de armas –, o deputado referiu-se a Wyllys como
“escória”. “Isso não é deputado, isso é a escória da política desse
país.” E, numa alusão à participação de Wyllys no BBB, encerrou dizendo
não admitir que “alguém que caiu de paraquedas, que veio de seu primeiro
mandato a reboque de um programa que diminui a sociedade”, dê “lição
moral de cueca”.
Wyllys tomou o microfone e fez um inflamado discurso: “Homens
decentes não assistem vídeo pornô em plena sessão plenária, homens
decentes não são condenados por improbidade administrativa, por roubar
dinheiro público”, lembrando que em maio o parlamentar fora flagrado
assistindo a um vídeo pornô no celular. E concluiu: “Não tenho medo de
coronéis, os tempos mudaram. Ele e todos os fascistas desta Casa vão ter
de me engolir, vão ter de me engolir. Eu sou homossexual assumido, sim,
e se acostumem com isso.”
Os seguidores de Jean Wyllys no
Facebook no final de outubro eram quase 800 mil, número composto
predominantemente por mulheres na faixa dos 16 a 30 anos. O fluxo de
comentários chega a milhares em alguns posts, e um funcionário de seu
gabinete passa os dias em frente ao computador, respondendo um a um.
Nem só elogios alimentam a correspondência. “Sou amado, mas também
odiado”, ele diz. As ameaças se intensificaram bastante em duas
ocasiões: quando o casamento igualitário foi aprovado pelo STF e quando
Dilma enterrou o Projeto Escola sem Homofobia, o kit gay. Um internauta
ameaçou: “OLHA POR ONDE ANDA, SEU VEADO! TE PEGO E TE MATO!!”
A equipe de Wyllys costumava ler mensagens desse teor em voz alta,
rindo, como forma de fazer um contraponto à selvageria. Com o tempo, a
artilharia passou a provocar medo. Dois internautas enviaram mensagens
com indicações de que os remetentes conheciam cada canto do Congresso e
estavam a par dos lugares desprotegidos de câmeras de segurança. Por
precaução, Wyllys deixou de divulgar sua agenda e evitou eventos
públicos em locais abertos. A dupla responsável pelas ameaças foi
identificada e presa em março de 2012, em uma operação da polícia
intitulada Intolerância. Um era morador de Curitiba, o outro, de
Brasília. Os criminosos faziam apologia à violência, sobretudo contra
mulheres, negros, homossexuais, nordestinos e judeus, além de incitarem o
abuso sexual de menores.
Recentemente foi feita uma varredura no apartamento de Wyllys em
Brasília. “Não é só ameaça de morte, mas também risco de sabotagem pra
cima de mim. Desde plantar drogas até infiltrar material suspeito. Me
constroem como inimigo público número 1. É uma gentalha. Uma
gen-ta-lha”, repetiu, elevando a voz e escandindo as sílabas.
Desde agosto o deputado integra a Comissão Parlamentar de Inquérito
dos Crimes Cibernéticos. Nos bastidores, tem prestado uma consultoria
informal a outros parlamentares vítimas de difamação na rede. Inúmeras
notícias falsas sobre Wyllys são criadas e replicadas feito vírus: que
ele quer obrigar todas as crianças a fazerem mudança de sexo; que vai
retirar trechos homofóbicos da Bíblia e conceder licença-maternidade
para as mulheres que abortarem; que é defensor da pedofilia – e por aí
vai.
No ano passado, em entrevista a O Estado de S. Paulo,
Wellington de Oliveira, um ex-assessor do deputado Feliciano, afirmou
ter produzido um vídeo difamatório contra Wyllys que teria sido aprovado
pelo pastor. “Eu não sei quem fez, mas que ficou bom, ficou”, comentou
Feliciano à época. (Mais tarde, Oliveira disse ter feito o filme por
encomenda do deputado.)
Atualmente há quinze procedimentos instaurados para apurar ofensas e
ameaças feitas ao deputado via internet. O caso mais recente teve
desfecho em setembro, com a condenação de Márcio Gleyson Damasceno, que
dois anos atrás compartilhou como notícia real uma piada do site
humorístico Sensacionalista (“Bancada gay lança projeto de lei
para proibir casamento de evangélicos”). Em sua página no Facebook, o
internauta fez o seguinte comentário: “Eu falei do deputado federal
endemoniado Jean. Se Deus não matar esse infeliz, eu mesmo vou matá-lo
pessoalmente. Querem respeito desrespeitando as leis de Deus e os
princípios da Bíblia Sagrada.” A Justiça do Rio Grande do Norte condenou
Damasceno a prestar serviços comunitários em uma instituição no
interior do estado que assiste homossexuais em situação de
vulnerabilidade.
Certa ocasião, um casal procurou Wyllys em seu gabinete. Estavam
perto de casar e participaram de um curso para noivos em uma igreja
evangélica. Um dos palestrantes mostrou um vídeo em que o deputado era
apresentado como aquele que veio para acabar com a família. Os noivos
consideraram um exagero e decidiram alertá-lo. Disseram que o autor do
vídeo era o pastor Rodrigo Delmasso.
O deputado distrital Rodrigo Delmasso, do PTN, é membro da Sara Nossa
Terra. Estava em meados de julho num megaculto realizado pela igreja
evangélica no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo. Quando cheguei, um
grupo de jovens cantava e dançava no palco ao som de música gospel com
pegada de rock. Muitos tinham cabelo colorido, tatuagem e piercing. O
bispo Robson Rodovalho, fundador da Sara, estava lá. Tem 60 anos, mais
de setenta livros publicados, um séquito de 1,3 milhão de fiéis em todo o
mundo e sente orgulho em dizer que a igreja é muito mais moderna do que
a Assembleia de Deus – a mais numerosa dentre as evangélicas. “Só tem
doido na Sara. Tudo tatuado. Jesus era tatuado”, ele diz. Apesar da
retórica, a Sara Nossa Terra considera que família é apenas a união
entre homem e mulher, posiciona-se contra a legalização do aborto e a
descriminalização da maconha.
Rodrigo Delmasso, com 35 anos e um sorriso constante no rosto
bochechudo, me recebeu numa sala vip do evento, destinada a bispos e
pastores. Pedi que falasse sobre o vídeo exibido no curso de noivos, de
sua autoria. Abriu o laptop e me mostrou um pequeno trecho. Nele, um
homem acusava Jean Wyllys de chamar os pastores de corja e de incentivar
a profissão de prostitutas. “E isto é incompatível com os direitos
humanos”, bradava o figurante do filme.
Delmasso fechou o computador depois de meio minuto. Com voz pausada,
explicou, sorridente: “Ensinamos nossos valores em cima da Bíblia. E
Jean Wyllys fez uma emenda obrigando a retirar todos os trechos
homofóbicos da Bíblia.” À observação de que tal projeto não existe, o
pastor não tergiversou. Disse que era questão de tempo: Wyllys logo
apresentaria algo nesse sentido.
O único gay assumido no Congresso
conta com o apoio do pequeno exército de mosqueteiros do PSOL, partido
criado há dez anos por dissidentes do PT descontentes com os rumos do
governo Lula. Nas últimas eleições, o PSOL elegeu cinco deputados
federais. Em maio esse número baixou para quatro, quando o Cabo Daciolo
(RJ) foi expulso, acusado de contrariar o programa da legenda –
evangélico, iniciava e finalizava seus discursos com a frase “Deus está
no comando”. Mas a gota d’água foi o projeto de lei que apresentou para
substituir “povo” por “Deus” no primeiro artigo da Constituição Federal
(“Todo o poder emana do povo”); não bastasse, na semana seguinte o
bombeiro militar defendeu os policiais militares envolvidos no caso
Amarildo.
Wyllys faz uma divertida síntese do grupo: Chico Alencar seria o
“vaselina”, o “veja bem” que, cheio de dedos, evita fazer críticas
contundentes; Ivan Valente, o “velho comunista radical”; Edmilson
Rodrigues, o “prolixo”, que se empolga tanto na tribuna que costuma sair
rouco de lá. E ele, “o cara que fala tudo muito na ‘chincha’, sem
dourar a pílula”. No final de setembro, o PSOL reconquistou a cadeira
perdida com a adesão do deputado federal Glauber Braga (RJ), que deixou o
PSB.
No primeiro dia de trabalho após o recesso de julho, Alencar entrou
no gabinete da liderança do partido com os braços abertos e a gravata
amarela solta no colarinho. “Bom dia, moças e moços! Bom dia,
transexuais e gays. Bom dia a todos”, saudou a equipe, que se levantou à
sua chegada. Como a sala de reuniões estava ocupada, nos sentamos num
canto, ali mesmo. Após um prelúdio de muitos elogios – “Jean é de uma
coragem surpreendente” –, disse que o deputado baiano é demasiadamente
intransigente e que uma dose de paciência lhe faria bem. “Parlamentar é
isto, tem que ser um pouco casca-grossa, sem perder a sensibilidade. Tem
que ter paciência. Jean diz: ‘É fácil para você, que não é alvo do ódio
como eu.’”
Alencar lembrou que, “como sexagenário”, é de um tempo em que as
expressões individuais muitas vezes eram solapadas em nome de valores
coletivos, e que a nova geração corre o risco de incorrer no pecado
contrário. “O Jean teve formação de base eclesial, aprendeu os valores
do coletivo, mas acabou no BBB, que é bem a cultura do nosso
tempo. E o Parlamento também estimula as figuras e pouco se fala em
partido, o coletivo anda muito fragilizado. Pode ser uma tentação ficar
no seu próprio nicho.”
Em seguida, entramos na sala onde Wyllys finalizava uma reunião com
sua equipe. Alencar o chamou de “papa-hóstia” e pediu que cantasse a
música que os dois costumam cantarolar quando o tédio domina o plenário.
“Psiu! Ouve aí, ateia!”, disse o líder do partido, pedindo silêncio a
uma das assessoras que matraqueava. Wyllys topou o desafio e soltou a
voz. Depois, ofereceu a Alencar um calendário do papa Francisco, mimo
que trouxera de suas férias na Europa. Para os dois, o pontífice é a
prova viva de que é possível ser católico e ter um discurso progressista
contra os preconceitos.
Era final de junho e o céu carioca
estava nublado. Sentado a uma mesa de canto do restaurante Felice Caffè,
em Ipanema, entre goles de um suco de laranja e garfadas de um frango thai, Wyllys avaliou estar mais comedido no segundo mandato. O maior exemplo disso teria ocorrido naquele mês.
Indignados com a artista transexual que simulou ser Cristo na cruz
durante a Parada LGBT, deputados evangélicos suspenderam uma sessão para
protestar. Depois de gritarem palavras de ordem como “respeito” e
“família”, deram-se as mãos e rezaram o Pai-Nosso, encerrando a oração
com vivas a Jesus Cristo. Muitos dos presentes dirigiram os olhos ao
único parlamentar assumidamente homossexual ali presente, à espera de
uma reação. Wyllys teve ganas de gritar “Canalhas!”, mas se conteve. “Eu
teria sido trucidado. Fazia parte da estratégia deles que eu reagisse,
mas fiquei quieto. Foi maturidade. Se fosse no início do primeiro
mandato, eu teria respondido.”
Um sujeito atravessou o salão do restaurante e se postou a seu lado.
Queria tirar um retrato com o deputado. Ele atendeu ao pedido do fã –
depois viriam mais dois – e ao retornar à cadeira narrou um episódio
recente.
Durante um evento numa escola pública de Macaé, no Rio, um
adolescente do ensino médio lhe contou que sua mãe, ao descobrir que ele
era gay, rejeitou-o categoricamente: “Esconde, dê um jeito.” O rapaz se
desorientou, ficou desesperado, e afirmou que ao ver o deputado ali na
sua frente se sentia reconfortado. “A minha existência é um ato de
esperança para muita gente. Dizem que todo homossexual é um fracassado.
Eu provo o contrário. Ser homossexual não é ter um destino imperfeito”,
disse Wyllys.
O deputado já se sentiu como o rapaz de Macaé, e seu alento foi ter
conhecido Chico Dantas, seu professor de literatura em Alagoinhas. Como
de hábito, pôs-se a recitar os versos de uma canção – agora, um trecho
de Velhos e Jovens, de Arnaldo Antunes: Antes de mim vieram
os velhos/os jovens vieram depois de mim/E estamos todos aqui/no meio
do caminho desta vida/vinda antes de nós/E estamos todos a sós/no meio
do caminho desta vida/E estamos todos no meio/quem chegou e quem faz
tempo que veio.
Ainda comendo, notou como em geral os LGBTs saem cedo de casa, numa
tentativa de assumir a identidade mais livremente, e encontram na rede
de amigos a família que deixaram para trás. “Acho que a ruptura com a
família é uma ferida no inconsciente coletivo gay. Até por isso acho tão
importante aprovar o casamento igualitário. A gente tem necessidade de
recompor essa família.”
Fez uma pausa, olhou para baixo e pousou os talheres. Tinha os olhos
marejados. Mordeu o lábio para conter o choro, mas não deu. “Por mais
que a gente vire arrimo de família desde cedo, a nossa vontade, no
fundo, é ser amado feito os outros, sem ter que fazer tanto esforço.”
Enxugou os olhos com o guardanapo e se desculpou.
O garçom veio tirar a mesa. E o defensor das liberdades individuais
contou que está vivendo no celibato. Andar livremente por aí tem sido
cada vez mais complicado, disse rindo. “Eu vou à sauna gay e, quando
entro, me olham como se eu fosse uma freira num puteiro.” Nas boates o
quadro não é muito diferente. Mal pisa no local, os frequentadores sacam
seus celulares para filmar e fotografar. “Vira uma vigilância, um saco.
É uma obsessão, um controle. Tudo vai parar na internet. Nunca
aconteceu, mas me policio bastante.”
Perguntei se ele tinha planos de disputar um cargo executivo. Disse
que seu perfil tem mais a ver com o Legislativo, e sobretudo que não
conseguiria fazer as concessões necessárias para se eleger numa disputa
majoritária.
Quando estive em Alagoinhas, seu irmão caçula, Ricardo, disse que
Jean Wyllys é uma incógnita. Ninguém imaginava que entraria na política,
e lá está ele. “Foi, encaixou e pegou. Amanhã ele surge com outra
ideia, encaixa e vai. E aí pronto.”