sábado, 13 de fevereiro de 2016

À MESA COM O VALOR - JORGE MAUTNER - O criador do Kaos

 À MESA COM O VALOR - JORGE MAUTNER

 O criador do Kaos

A liberdade de expressão e o otimismo em relação ao Brasil são marcas do poeta e músico, que diz: “Ou o mundo se ‘brasilifica’ ou vira nazista”.

 Por Tom Cardoso, para o Valor, do Rio 12/02/2016



Anda meio deprimido? Almoce com Jorge Mautner. Zika vírus, Samarco, Lava-Jato, recessão, desemprego, inflação? Nada é capaz de diminuir o otimismo do músico e poeta pelo Brasil. Não, ele não é uma versão real da Velhinha de Taubaté, a ingênua e crédula personagem criada por Luis Fernando Verissimo durante o mandato do presidente João Baptista Figueiredo (1979-1985), transformada em celebridade por ser a única a acreditar no governo.


Nada do que Mautner diz é raso, desprovido de argumento. Em cinco minutos de conversa, ele já havia citado frases do escritor e músico indiano Rabindranath Tagore (“A civilização superior do amor nascerá do Brasil”) e do filósofo francês Jacques Maritain (“O único lugar onde a justiça e a liberdade poderão aflorar juntas é o Brasil”) para corroborar sua tese, cada vez mais incompreendida, de que somos não só um país bem-sucedido como devemos dar exemplos aos outros. Aliás, Mautner criou o seu aforismo sobre o tema, já transformado em mantra e em letra de música: “Ou o mundo se ‘brasilifica’ ou vira nazista”.


O músico chega ao restaurante Degrau, no Leblon, ao lado de João Paulo Reys, que organizou, com Maria Borba, o seu novo livro, “Kaos Total” (Companhia das Letras). Trata-se de uma compilação de letras, textos, poesias, fragmentos de prosa poética (muitos deles inéditos) e pinturas naïf (uma faceta pouco conhecida de Mautner) que ajuda a explicar as razões e os motivos para tanto otimismo. O livro vai ser lançado em São Paulo, na quarta-feira, no Museu da Imagem e do Som (MIS), às 19 horas.


Questionado sobre se o Brasil não corre o risco de também caminhar no sentido oposto à sua tese, com o crescimento de casos de intolerância — ali mesmo, no Leblon, Chico Buarque foi hostilizado por um grupo de jovens, e a articulação, por exemplo, da chamada bancada da bala para aprovar no Congresso Nacional mudanças no estatuto do desarmamento.


Mautner se incomoda. É um otimista que não gosta de reducionismos. “É preciso levar em conta as simultaneidades. Se você quer levar para esse lado, não vamos nem começar”, diz. “Ninguém aqui é criança, né?” Estamos na última mesa do segundo andar do restaurante. O garçom chega com os cardápios. O músico recusa o seu. “Quero uma torta alemã”, diz, pedindo a sobremesa, uma das especialidades da casa. Todos estranham sua decisão de começar o almoço pelo fim. Mas estamos falando de Jorge Mautner. É impossível doutrinar o filho de um judeu austríaco com uma católica iugoslava, criado no candomblé pela babá, que, aos 14 anos, viu o seu singelo quarto de criança transformado num boteco. Pela mãe.


“Ela disse que precisava ‘humanizar’ o filho e montou um bar no meu quarto com uísque, cachaça e gim”, conta. “O que eu aprontava no meu quarto não se fazia na época nem nos bares de Greenwich Village [bairro nova-iorquino habitado por malucos de todos os tipos, ponto de ebulição da literatura beatnik]”, compara Mautner, orgulhoso de suas transgressões juvenis.




O inocente adolescente tornou-se um ébrio e começou a dar à luz seus devaneios. Foi no seu etílico quarto que ele gestou o primeiro livro, “Deus da Chuva e da Morte” (vencedor do Prêmio Jabutiem1962), os seguintes “O Vigarista Jorge”, “Fragmentos de Sabonete”, “Panfletos da Nova Era” e as bases do Partido do Kaos, sua profissão de fé. “Sabe quais são as quatro definições para K.A.O.S?”, pergunta Mautner, para em seguida responder: “Kamaradas Anarquistas Organizando-se Socialmente; Kristo Ama Over Sonora; e Kolofé, Axé, Oxóssi e Saravá”, explica. E a quarta? “Você mesmo inventa.” Não há dúvida: dona Anna Illichi, mãe de Mautner, cumpriu com louvor a missão de humanizar o filho. “Minha educação foi a mais livre e abrangente possível.”


A torta chega. “É uma das coisas boas da Alemanha”, comenta Mautner. É sua primeira refeição do dia. A indisciplina alimentar parece não ter tido efeitos mais imediatos na sua saúde. Mautner, que acaba de
completar 75 anos, mantém o mesmo peso há anos, desde que começou a praticar tai chi chuan em 1958, hábito que segue até hoje, alternando sessões de alongamento e de Pilates, enquanto assiste a noticiários na televisão. “Eu faço exames e nunca encontram nada. Samurai tem dessas coisas”, brinca. “Eu acho que consigo sobreviver um pouco mais. Mesmo assim, tenho inveja de vocês, que vão viver mais de 400 anos”. Reys espanta-se com a previsão. “É isso mesmo.A medicina e a ciência já estão próximas de descobrir a cura para todas as doenças.”


A despeito do bar montado pela sua mãe, Mautner nunca teve sérios problemas com álcool. Aliás, teve, mas foi passageiro. Deixou de beber depois de uma experiência traumática, vivida no seu Greenwich Village particular. Embriagado, agrediu um amigo com faca, por causa de uma discussão sobre futebol.O Corinthians, seu time do coração, havia tomado uma goleada do São Paulo, pelo qual torcia o amigo. “Eu disse: ‘Não tripudia! Não tripudia! Ele continuou provocando e por pouco eu não o matei”, conta. “A faca quase chegou ao fígado dele.”


Mautner já comeu metade da torta alemã. O garçom avisa que o polvo temperado com molho de vinho branco e ervas finas, acompanhado de arroz com brócolis, dá para duas pessoas. Se a experiência de Mautner com o álcool foi breve, interrompida pelos acontecimentos, com as drogas ela se prolongou por muitos anos até que decidisse, de forma voluntária, frequentar os Narcóticos Anônimos (NA). “Cheguei à reunião no NA de mãos dadas com a minha filha, Amora [Mautner], e com o [diretor de televisão] Dennis Carvalho”, conta. Como o transgressor Mautner, o “Vigarista Jorge”, o artista que entrara e saíra de todas as estruturas, se viu de repente “engessado” numa reunião dos Narcóticos Anônimos, cumprindo todos os protocolos e dividindo suas frustrações e dramas com estranhos? “Ali ninguém é mais do que ninguém. Para a morte e para as drogas da morte somos todos doentes máximos”, diz o músico. Ele passa a cantarolar “Coisa Assassina”, o seu libelo contra as drogas, musicado por Gilberto Gil: “Maldita seja/ Essa coisa assassina/ Que se vende em quase toda esquina/ E que passa por crença, ideologia, cultura, esporte/ E no entanto é só doença,monotonia da loucura e morte”.


Hoje, um de seus únicos vícios é comer torta alemã. Mautner pede um café e uma segunda torta. Ele passa a falar com imenso orgulho sobre as façanhas e qualidades de Amora, que teve com a historiadora Ruth Mendes de Sousa, com quem não está mais casado. Amora é diretora de “A Regra do Jogo”, novela das9da Rede Globo. No novo livro, dedicado a nomes como o artista plástico José Roberto Aguilar, a ambientalista Dulce Maia de Souza e o físico Mário Schenberg (1914-1990), Mautner faz um agradecimento especial à filha e à família: “Eu sou o pequeno planeta, que gira em órbita sem cessar ao redor de três estrelas que me irradiam vida: a minha esposa Ruth,a minha filha Amora e minha netinha Julia”.


“Ela [Amora] é impressionante. Além de diretora artística sensível, ela cuida de toda parte executiva, tem habilidade para exercer as duas funções”, afirma. “Eu, por exemplo, jamais tive qualquer aptidão executiva, tanto que só consegui lançar esta antologia por causa do esforço de dois grandes e jovens pesquisadores, que se meteram a fazer o que eu jamais conseguiria: fuçar o meu legado e organizá-lo.”


Mautner começa a devorar a segunda torta alemã da tarde. Em entrevista ao Valor, Amora reconheceu a enorme influência que o pai exerceu em sua vida, sobretudo na maneira de encarar as coisas. “Somos
muito diferentes, mas parecidos em traços importantes, que moldam o meu jeito de viver até hoje. Somos livres. Não nos importamos com a opinião dos outros”, disse.


Mautner sorri, curioso para saber mais. Na mesma entrevista, ela também ressaltou as diferenças entre os dois: “Ele é satisfeito com a vida interna dele, passa boa parte do dia lendo, meditando. Eu sou caótica, difícil me fazer parar”. Abismo, aliás, que era muito maior anos atrás, no auge do “desbunde” do pai, que coincidiu com a adolescência de Amora.


Um dos pontos do documentário “ Jorge Mautner, o Filho do Holocausto” (2012), dirigido por Pedro Bial e Heito D’Alincourt, se dá no momento em que Amora revela que morria de vergonha do pai, quando ele ia buscá-la na escola—um tradicional colégio carioca—usando apenas uma sunga.


“Hoje eu me arrependo, claro, tinha que ter percebido que aquilo que parecia algo tão natural para mim na verdade a incomodava muito”, diz Mautner. Ele diz que segue cometendo erros e eles são necessários. Sempre. “A imperfeição é a medida do ser humano.A perfeição é nazista.”


O músico e poeta aproveita a deixa para falar novamente sobre o Brasil e o seu otimismo sem fim. Mautner não se convence nem com a lista de recentes acontecimentos no país, que é capaz de tornar o mais crédulo dos homens em um cético contumaz. Seu tom de voz é professoral: “Para salvar a democracia, para salvar o Brasil, para salvar o povo brasileiro, veio o Sergio Moro com a Lava-Jato”.


Seria uma ironia? Não é. Para Mautner, seguimos dando o exemplo para o mundo. Mesmo quando a barra pesou — e ele foi uma das muitas vítimas —, como no regime militar (1964-1985), a perda da democracia,
segundo o músico, se deu pela vontade de uma minoria. “O golpe foi dado por apenas 5% do Exército”, afirma. Ele próprio diz ter vivido uma situação curiosa: foi protegido pela cúpula do Segundo Exército assim que o general Castello Branco assumiu a Presidência. Foi levado para uma fazenda em Barretos (SP) para não correr o risco de ser morto pelo CCC, o Comando de Caça aos Comunistas. “Eles disseram que eu, filiado ao PC do B [Partido Comunista do Brasil], colunista do combativo jornal ‘Última Hora’, encabeçava a lista de procurados pelo CCC e, por ser um patriota,um grande escritor, tinham o dever de me proteger.”



Mautner no Degrau, sobre sua adolescência: “O que eu aprontava no meu quarto não se fazia na época nem nos bares de Greenwich Village”


O polvo com ervas finas é servido. Mautner está quase no fim da segunda torta alemã. Pedirá a terceira? Ele prefere um café carioca. Mas o que ele fez durante o tempo vivido em Barretos, hóspede, aos 23 anos, dos militares? “Fiquei conversando sobre história do Brasil e filosofia alemã. Os oficiais eram gente da maior categoria, muito cultos.” Mesmo sendo tratado como hóspede, Mautner só foi “liberado” para voltar a São Paulo três meses depois e mesmo assim sob a condição de não escrever nada que fosse considerado ofensivo ao governo.Não cumpriu as ordens e escreveu, logo em seguida, “Vigarista Jorge”, publicado em 1965, logo proibido pela censura.


O que se seguiu adiante é narrado de forma resumida por Mautner. Mesmo com visto para morar em Cuba, ele, tratado de hóspede a inimigo pelos militares, preferiu exilar-se nos Estados Unidos, onde trabalhou na Unesco até virar secretário literário do poeta americano Robert Lowell. Sua volta para o Brasil coincidiu com o período de abertura política, fase em que se aproximo de Golbery do Couto e Silva (1911-1987), ministro da Casa Civil de 1974 a 1981, tido como um dos ideólogos do golpe de 64.


Pouco se falou até hoje sobre os encontros, quase secretos, de Golbery com parte da classe artística, que incluía, além de Mautner, nomes como os cineastas Júlio Bressane e Glauber Rocha. Este chegou a enviar para a revista “Visão”, em 1974, uma carta em que chama Golbery de “Gênio da Raça”, provocando a ira e a perseguição eterna de setores da esquerda. Mautner não chega a tanto, mas diz, sem rodeios, que os seus inimigos eram outros.


Mautner pede mais um café carioca. Ele afirma, sem receio de ser patrulhado, que no meio da década de 1970 estava muito próximo ideologicamente de um general como Golbery, para ele um legalista, o grande catalisador do processo de redemocratização, que terminaria na Lei da Anistia, em 1979, do que de alguns artistas descolados que insistiam em apoiar a luta armada ou estavam ligados a movimentos e ideais extremistas — dando cada vez mais motivos para os generais da linha dura frearem o processo de redemocratização.


“A contracultura sempre foi nazista. Por aqui, boa parte da esquerda achava que direitos humanos era coisa de burguês”, diz Mautner. “Posso dar aqui vários exemplos.” Ele cita, de fato, vários nomes de peso da cultura brasileira, incluindo um ícone do rock brasileiro e um escritor contemporâneo, expoentes da Sociedade Alternativa, movimento inspirado nos escritos de Aleister Crowley (1875-1947). “Crowley era um nazista de carteirinha”, observa Mautner.




Amigo de fé de Caetano Veloso e Gilberto Gil, Mautner, que voltou do exílioseis meses antes dos dois baianos, não contou à dupla, na época, sobre os seus encontros com Golbery, mas sabia que, sem eles, dificilmente poderia liderar sozinho um movimento pela redemocratização do país. “Eles eram os protagonistas”, afirma. Mautner relata que forçou o máximo para que Caetano e Gil voltassem logo do exílio, contrariando a recomendação de lideranças da esquerda, entre elas a da socióloga e ativista política Violeta Arraes (1926-2008). “Ela dizia que era preciso ‘dramatizar’ o máximo possível a ditadura e manter Caetano e Gil em Londres fazia parte dessa estratégia.”


Quando Gil e Caetano voltaram e, anos depois, já no processo de abertura política, Gil gravou uma versão (“Não Chore Mais”) para “No Woman, no Cry”, de Bob Marley, citando os amigos presos, “amigos sumindo assim”, a linha-dura do Exército, segundo Mautner, armou (em julho de 1976) para que ele fosse preso por porte de maconha, em Florianópolis. “A imprensa todinha ficou do lado de Gil, incluindo os grandes jornais e redes de televisão, uma prova de que interessava a uma parte mínima da sociedade, incluindo as próprias Forças Armadas, e setores da esquerda radical, manter um regime autoritário por muito tempo”, afirma. “Nossa tradição não é bélica. Somos o país do marechal [Cândido] Rondon [1865-1958], um militar conhecido pela seguinte frase: ‘Matar jamais, morrer se for preciso’.”


São quase 4 da tarde. Não há mais nenhuma mesa ocupada na parte de cima do Degrau. Mautner atende gentilmente ao pedido da fotógrafa para que todos se desloquem para a mesa ao lado, onde a luz e os ângulos são mais convidativos. A fotógrafa, que acabara de chegar, pergunta pelo prato de Mautner— é preciso, como é praxe nesta seção, fazer um retrato dele. O músico solta uma gargalhada: “Eu comecei e acabei pela sobremesa”. O garçom avisa que ainda há um pouco de polvo e que pode montar o prato para o retrato, desde, claro, avisa o repórter, que ele seja comido pelo entrevistado. “Ah, não estou com vontade”, afirma Mautner, que não demora a sugerir uma solução para o impasse: “Posso pedir mais uma torta alemã?”



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