segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Minas não acredita em Minas? - ALCIONE ARAÚJO

Herdamos a tão propalada desconfiança dos nossos antepassados do Ciclo do Ouro. A riqueza súbita convivia com roubos e traições 
 

ALCIONE ARAÚJO


“Sempre me intrigou o jeito blasé, de quem não se impressiona com nada, assumido por nós, mineiros. Acho folclórica a imagem de desconfiado, usurário e sonegador que o Brasil tem de nós. Mas sempre tive curiosidade de saber por que, diante do extraordinário, do extravagante ou do maravilhoso, há em Minas um esmerado empenho em exibir uma fria naturalidade, como se fosse familiar e corriqueiro. Com que propósito se escamoteia que uma coisa, uma pessoa, uma obra é impressionante, inesperada, deslumbrante?

Depois de tantos anos vivendo fora de Minas, quando encontro um amigo mineiro e comento, por exemplo, o extraordinário romance do Saramago, a reação é uma pálida e silenciosa concordância, que não vai além de um balançar de cabeça. Tão constrangida que parece esboçada apenas para não me desapontar, como convém à nunca assaz louvada hospitalidade mineira. Se, com outro amigo, comento o fantástico espetáculo de Aderbal Júnior sobre Vargas, a resposta é, quando muito, um gélido e circunspecto “... interessante”. E vá agora você elogiar o último filme de Wim Wenders: receberá de volta um olhar superior, acompanhado de um sorriso blasé, seguido de um lacônico “... é.”, pronunciado depois de amarga indecisão.

Qual seria a origem de um comportamento tão singular? A frieza e a discrição diante do inesperado talharam a conduta de celebrados políticos mineiros, que, sem perder as oportunidades, souberam conter paixões e entusiasmos na avaliação objetiva do quadro de forças. Há quem diga que as montanhas criam uma propensão ao ensimesmamento, que é parte da psicologia mineira refrear a empolgação. Um mineiro eufórico – dizem – morreria de solidão depois de devidamente secado pelo olhar demolidor do vizinho mais próximo.

Consta que herdamos a tão propalada desconfiança dos nossos antepassados do Ciclo do Ouro. A riqueza súbita convivia com roubos e traições: o contrabando tinha que driblar a repressão implacável. Nesse ambiente, quem não fosse astuto, velhaco e manhoso não rapava nada. Mais do que ser desconfiados, ali aprendemos a ser sonsos: jurar lealdade e fé e, ao mesmo tempo, encher de ouro o oco da santinha”.

Essa crônica, escrita em 1992 – lá se vão 20 anos! – foi publicada em revista de circulação nacional. Esquecera-me totalmente, até me chegar às mãos a prova de língua portuguesa e literatura brasileira do vestibular da UFMG. Lá estava ela, junto aos textos de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Darcy Ribeiro. Sobre a crônica, a prova tinha quatro questões com quatro opções cada. Não me pareceram difíceis, mas estou certo de que o angustiado vestibulando deve ter enxovalhado a memória da minha mãe. Republico-a aqui, tantos anos depois, para indagar se os mineiros foram mesmo assim, se a atitude persiste, e também como provocação, à luz de fatos políticos recentes, a ver se os mineiros mudaram, ou se, nos dias de hoje, ainda se pode dizer que os mineiros não acreditam em Minas.
 
ESTADO DE MINAS
15/10/2012 

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