segunda-feira, 11 de março de 2013

A busca insaciável do prazer - Joaquim Ferreira dos Santos


 O Globo 11/03/2013

‘JFS é um profissional alimentado pela eterna fome da curiosidade’

O andarilho JFS, na sua ânsia de virar a cidade pelo avesso, está subindo a Ladeira dos Tabajaras em busca do que, haviam lhe dito na véspera, era a melhor refeição popular servida naquela semana em todos os restaurantes do Rio. Num sábado de verão ao meio-dia, a Ladeira dos Tabajaras não é para qualquer um. Íngreme, sem árvores, a temperatura é de incêndio carioca, sem esperança de escada Magirus na curva.

JFS está acostumado.

Na infância, enquanto as outras crianças ficavam encarnando nos macacos do zoológico, ele ia direto para a jaula que simulava uma pedreira e por onde corria, seguro, sem escorregar jamais, um rebanho de cabritos. Aquela capacidade de aderir ao solo improvável e dali, inalcançável, contemplar o mundo dos que não tinham desenvolvido seus cascos — isso impressionava o menino.

Adulto, JFS tomou gosto por passar o fim de semana em esforço idêntico. Acha que desestressa, zera o QI e dá um barato legalizado. Ele gosta de descobrir trilhas morro acima. Durante uma época, morador do Cosme Velho, beirava irresponsavelmente o abismo aos seus pés, a trilha dos trilhos da estrada de ferro que conduz o bondinho ao alto do Corcovado. Aparentemente, sobreviveu.
Nos últimos anos, JFS desenvolveu o gosto por corridas em morros. Guarda numa gaveta de troféus, misturadas a um diploma de Carioca da Gema dado pela Confraria do Garoto, três medalhas que lhe foram conferidas por terminar, sem a necessidade de balões de oxigênio, duas provas na Rocinha e uma outra no Vidigal.

As três tinham a distância de 5km, percorridos aos trotes, pulando valas, escadarias e exigindo que se fixassem os pés aos pedregulhos, como os cabritos da infância. JFS escorrega algumas vezes na vida, mas aprendeu vendo os bichos no zoo que o bom cabrito não berra. Tem ido em frente. Carrega com orgulho as medalhas que esparadrapos e mertiolates também cravam na pele.

JFS preparava-se, vê-se que não é de hoje, para subir a Ladeira dos Tabajaras, onde está agora em busca de um restaurante com um baião de dois e costela de boi capaz de fazer um cabrito uivar para a lua. Ninguém sabe direito onde fica, nem mesmo os policiais da UPP na subida do morro. JFS continua perguntando. É um profissional alimentado pela eterna fome da curiosidade. Se é um vício congênito ou adquirido por décadas de exercício, fumando do cachimbo da informação, ele não consegue mais decifrar. Gosta disso, tem-lhe sido a vida, é bonito, é bonito, e lhe é o natural.

Em meio à pirambeira da Tabajaras, JFS lembra de ter ido com o humorista Jaguar a uma investigação parecida. Era um lugarejo de Caxias conhecido como Cabaré dos Bandidos. Lá, provaram de uma carne de cobra servida em rodelas, com o detalhe pitoresco de a dona da birosca circular entre as mesas com uma delas, uma cobra, viva, decorando-lhe o pescoço. Rugendas, Debret, esses pintores viajantes que registraram o passado exótico da cidade, fariam o mesmo que o grande Jaguar.
Ele tinha duas páginas no Pasquim com o título de “BIP — A busca insaciável do prazer”, e desenhou a cena no jornal, indicando a carne de cobra como a melhor refeição popular da semana. JFS aparecia no canto do desenho, adornado por aquele chapeuzinho de repórter de Hollywood, a inscrição “Press” gravada gaiatamente. Jaguar lhe pôs na caricatura um ar interessado, mas sem alardes. Uma curiosidade equilibrada de quem já viu de tudo nesse mundo e muito mais ainda veria com o fito de se divertir, escrever e tocar a vida.

JFS gosta de caminhadas pelos motivos já relatados e também pelo chorrilho de sensações que elas provocam. O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que ele voa quando se flana, caminhando com o visual de Copacabana logo abaixo dos pés.

Ele escala a pirambeira na companhia de uma santa criatura que a tudo acompanha sorridente, embaixo do sol de rachar catedrais, mas JFS tem certeza que ela estaria do mesmo jeito se fossem raios e tempestades num filme de zumbis. Lembra de Niemeyer (“a vida é uma mulher do lado e seja o que Deus quiser”) e, marchando em frente, conclui filosófico que o resto é bobagem.

JFS calça tênis Nike Free verde e rosa, modelo especial usado pelas baterias da Mangueira nos ensaios do carnaval. Deve ser por isso que os cachorros soltos na ladeira latem tanto diante de sua estridente passagem cromática. Deve ser por isso, esse tonitruante sinalizador não programado, que carros e motos também passam rente — não há calçadas, anda-se no meio da rua — e nada o atropela.
Muitos buracos, valas e perguntas depois, JFS chega ao “18”, o restaurante do Romero. Uma televisão ligada mostra o programa da Angélica. O ventilador despeja uma ventania de set de “... E o vento levou”. As mercadorias estão espalhadas, um caos, e dá para ouvir que elas riem quando JFS comenta que o feng shui não conseguiu subir até ali. Está pseudamente inspirado. Diz que tudo vale a pena se a fome não é pequena — e cai matando a espetacular costela com baião de dois, a R$ 14, servida em mesas e cadeiras da massa falida de um restaurante do chef Olivier Cozan, a quem o dono da birosca foi subalterno tempos atrás. Foi num bistrô da civilização plana de Ipanema. Lá embaixo, lá onde os cabritos são mais chiques, mas nem sempre tão felizes e bem servidos.


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