Revista Época - 03/06/2013
Roberto Civita nunca escondeu de ninguém sua admiração pelos
editoriais que Ruy Mesquita escrevia. Dono e dirigente máximo do Grupo
Abril, Civita poderia se vangloriar de textos publicados na sua própria
casa editorial, mas, com frequência, dizia que a página 3 de O Estado
de S. Paulo era das mais bem escritas da imprensa brasileira.
Tinha razão. O tradicional diário paulistano, que nasceu no século
XIX defendendo a causa republicana e antiescravagista e atravessou o
século XX enfrentando governos autoritários (embora tenha apoiado a
ditadura militar nos seus primeiros anos), soube fazer de sua página 3
uma espécie de coluna vertebral da opinião pública do país. Você pode
até não concordar com as teses dos editoriais que aparecem ali todos os
dias mas, ao ler um deles, não tem como deixar de ficar mais bem
informado. Qualquer um que lê um editorial do Estadão aprende alguma
coisa que não sabia antesaprende principalmente a admirar, naqueles
parágrafos de índole conservadora e, ao mesmo tempo, liberal, a ironia
ácida conjugada à seriedade quase vetusta.
Foi sob o comando de Ruy Mesquita que os editoriais do Estadão
alcançaram seu apogeu. O homem ia todas as tardes à redação do jornal
para orientar seus editorialistas. Seguiu essa rotina até morrer, aos
88 anos, na noite de 21 de maio. Cinco dias depois de Ruy Mesquita, um
de seus leitores mais atentos, Roberto Civita, também morreu. Tinha 76
anos.
O desaparecimento dos dois deixa vazios insanáveis no Estadão e na
Abril e fecha um ciclo na imprensa brasileira. O primeiro editou
jornais. Nos anos 1960, lançou o Jornal da Tarde, que renovou a
linguagem jornalística. O segundo foi um inventor de revistas. Desde
1958, quando desembarcou em São Paulo, depois de fazer sua formação
universitária nos Estados Unidos, criou pessoalmente alguns dos títulos
mais fortes do mercado editorial brasileiro.
Acima de jornais e revistas, porém, Ruy Mesquita e Roberto Civita
tiveram o dom de editar gente. Formaram ou ajudaram a formar boa parte
dos mais destacados jornalistas que hoje estão em atividade no país.
Também por isso, a influência de um e de outro ainda se estenderá por
décadas. Além de amigos, deixaram também alguns desafetos, é verdade.
Mas nenhum dos desafetos, por maior que seja o ressentimento, poderá
negar o peso fundo dessa influência. Não há como.
Cada um a seu modo, encarnaram a própria razão de ser da imprensa,
essa instituição que, para viver com saúde, depende do pluralismo e da
diversidade de opiniões. Durante a ditadura militar, Ruy Mesquita
protegeu jornalistas perseguidos pela repressão política. Em artigos
recentes, Fernando Morais e Marco Antonio Rocha, vítimas dessa
perseguição, deram seus depoimentos. "Não se tratava apenas de um gesto
de coragem, em meio ao breu de uma ditadura implacável", escreveu
Fernando Morais. "Mesmo correndo os riscos que aquilo implicava, doutor
Ruy estendia generosamente a mão a alguém cujas ideias - ambos
sabíamos disso - pouco ou nada tinham a ver com as dele."
Roberto Civita tinha um traço parecido. Nos anos 1980 e 1990, quando
jornalistas contratados da Abril faziam campanha aberta em prol de
candidatos do PT, não intimidou ninguém. Nem deixou intimidar. Não
perguntava a seus empregados em quem votariam. Não prejudicou a
carreira de ninguém. A visão que ele tinha de democracia, a mesma visão
que sempre o impeliu para bem longe de qualquer projeto socialista,
impunha ao seu código de conduta pessoal o dever de defender a
liberdade de todos, mesmo daqueles que professavam ideologias que ele
julgava desastrosas. Acima da defesa da livre-iniciativa, bandeira que
empunhou sem nenhuma hesitação, praticou e ensinou o valor da livre
manifestação das ideias - inclusive das ideias ruins. Acreditava
tranquilamente que o debate franco terminaria por fazer prevalecer as
melhores.
Para ele, opinião não se sufocava, nem se vendia. A preço nenhum. Nas
suas revistas, a redação ficava bem separada da publicidade, para que
não houvesse nenhuma dúvida quanto a isso. Sua vocação jornalística não
entrava em choque com seu tino comercial. Ao contrário, as duas se
combinavam. "Roberto Civita foi a melhor e mais sofisticada combinação
de empresário e editor que conheci", disse sobre ele o presidente do
Grupo Folha, Luís Frias, numa síntese arguta.
Com a morte de Roberto Civita e de Ruy Mesquita, a imprensa perde
dois gigantes, dois inspiradores. Ficam agora os discípulos. Uns estão
na Abril, outros no Estadão e muitos mais se espalham pelas melhores
redações do país. Não são poucos os que trabalham aqui, na redação de
ÉPOCA.
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