segunda-feira, 3 de junho de 2013

O 'chefão' do cinema brasileiro

 Valor Econômico - 03/06/2013

Por Bruno Ghetti | Para o Valor, do Rio

 

É quase impossível falar do cinema brasileiro dos últimos 50 anos sem passar, direta ou indiretamente, pelo nome de Luiz Carlos Barreto. O produtor foi peça chave do cinema novo, nos anos 1960, e teve importância decisiva na criação da Embrafilme, distribuidora estatal de filmes nas duas décadas seguintes. Viabilizou obras essenciais de Glauber Rocha (1939-1981), Nelson Pereira dos Santos e Carlos Diegues, ao mesmo tempo em que produzia longas-metragens que levavam milhões às salas. Nos anos 1990, emplacou duas produções brasileiras entre os indicados ao Oscar de filme estrangeiro. E em todos esses anos, participou ativamente das discussões de políticas culturais no Brasil.

Aos 85 anos, Barretão, como é conhecido no meio artístico, celebra os 50 anos de fundação da produtora LC Barreto. A empresa financiou mais de 80 filmes, marcos históricos do cinema brasileiro, como "Terra em Transe" (1967), de Glauber, e "Bye Bye, Brasil" (1979), de Diegues, e muitos sucessos de público, como "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976), do filho Bruno Barreto, o primeiro longa nacional a superar a marca dos 10 milhões de espectadores - recorde batido apenas em 2010 com "Tropa de Elite 2", de José Padilha.

Hoje em dia, embora com produções mais modestas em termos estéticos e de bilheteria - o mais recente foi "Lula, o Filho do Brasil" (2009), dirigido por Fábio, filho mais novo do produtor -, a LC Barreto segue em plena atividade. O próximo filme a ser lançado é "Flores Raras", de Bruno Barreto, que estreia em 16 de agosto, sobre a história de amor entre a poeta americana Elisabeth Bishop e a arquiteta e paisagista carioca Lota de Macedo Soares.

A longevidade da empresa mostra que, em alguns casos, é possível viver de cinema no Brasil. O segredo do sucesso? "Não acho que podemos dizer que somos um sucesso...", diz Barreto, sem muita convicção na própria modéstia. Em seguida, explica melhor: "Somos eficientes. Nossa preocupação é fazer, mas fazer sempre o melhor. E entregar, porque filme que fica parado no meio do caminho é nosso fantasma. Então a palavra é "entregar"", diz, agora em tom mais convincente.

A disciplina é marca forte no estilo de produção de Barreto. Ele costuma dizer que cinema é uma "operação artístico- militar". "Uma equipe precisa trabalhar com uma hierarquia que tem de ser respeitada - do diretor ao boy. Existe uma autodisciplina [entre os profissionais], e tudo tem que ser feito com consciência. Há até, como nos quartéis, uma ordem do dia que precisa ser seguida."

Para falar de sua empresa, Barreto recebeu a reportagem em seu apartamento, no bairro de Laranjeiras (zona sul carioca), com vista para oo de Açúcar. Em um ponto da sala, uma mesa expõe símbolos religiosos e foto do filho Fabio, em "estado de consciência mínima" desde 2009, quando sofreu acidente de carro e teve traumatismo craniano - ele receberá novo tratamento em breve.

Antes de a entrevista começar, Barreto pede desculpas ao repórter para fazer uma ligação. Ao telefone, confirma um jantar em sua casa com o ministro dos Esportes, Aldo Rebelo. A ligação com o poder não é de hoje: Barreto conheceu e manteve conversas políticas com vários presidentes, quase sempre em relações amistosas. Seus detratores, aliás, já o reprovaram exatamente por sua capacidade de "ficar bem" com quem está no poder - foi criticado, por exemplo, ao produzir uma biografia de Lula na época da eleição de Dilma Rousseff. Mas seu bom trânsito nas altas cúpulas já teve efeitos positivos para o cinema como um todo. Seu prestígio diante dos militares permitiu a criação da Embrafilme, que deu um impulso à produção cinematográfica nacional nos anos 1970.

"Lançamos mão de recursos próprios e de financiamentos bancários. Em 50 anos de empresa, nunca paramos por um dia."

"A ditadura pregava o nacionalismo. Os militares queriam formar uma empresa de exportação de filmes brasileiros - mas isso ia virar uma agência de turismo. Nós conseguimos convencer o governo de que aquiloo era o que o cinema brasileiro precisava naquele momento, que era se solidificar e se impor no próprio mercado", afirma.

Barreto nasceu na cidade cearense de Sobral, em 1928, e foi criado com dificuldades pela mãe (o pai deixou a família quando ele tinha três anos). Até a adolescência, só pensava em jogar bola, mas com os anos foi se interessando por política (foi comunista na juventude) e pelo jornalismo. Aos 19 anos, mudou-se para o Rio, onde conseguiu um emprego que mudaria sua vida: repórter fotográfico para a lendária revista "O Cruzeiro". Ali, conheceu e clicou personalidades de diversas áreas, de Pelé a Che Guevara (1928-1967), passando por Marlene Dietrich (1901-1992). Conheceu também o dono da revista, Assis Chateaubriand (1892-1968), de quem absorveu o espírito empreendedor, a tendência à polêmica e o carisma. "Poderia fazer um filme sobre ele só com as minhas lembranças."

No início dos anos 1950, conheceu uma jovem pianista, Lucy, de quem jamais se separou. Com sua outra grande paixão, o cinema, só se ligaria com força após 1961, quando conheceu Glauber Rocha. O cineasta baiano incentivou o novo amigo a entrar para a área, e Barreto logo assinaria o roteiro de "O Assalto ao Trem Pagador" (1962), de Roberto Farias, e a inovadora direção de fotografia de "Vidas Secas" (1963), de Nelson Pereira dos Santos.

Barreto se interessava por filmes voltados para a realidade brasileira, principal diretriz do cinema novo, e virou um dos mais atuantes do movimento. Largou o jornalismo em 1963, quando se lançou como produtor para viabilizar o documentário "Garrincha, Alegria do Povo" (1963), do amigo Joaquim Pedro de Andrade (1932 - 1988).

"Na época, produzíamos muitas coisas ao mesmo tempo. "Vidas Secas", "Garrincha", "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" [1965, de Roberto Santos] e "O Padre e a Moça" [1966, de Joaquim Pedro] foram feitos quase simultaneamente. Hoje, a fórmula econômica adotada no cinema brasileiro é ineficaz e até prejudicial, porque é filme a filme. Empresas com vários projetos, que poderiam tocá-los, têm de parar e esperar", diz, referindo-se à dependência de muitos produtores de recursos públicos.

Barreto também faz captação em editais, mas é um dos poucos que podem se dar ao luxo de concluir filmes mesmo sem dinheiro público (caso de "Lula"). Nem tanto por dinheiro em caixa, mas por seu crédito na praça. "Tenho capacidade de endividamento da minha empresa. Quando vejo que o processo de captaçãoo está dando suficientemente para levar o filme nos [nossos] parâmetros de qualidade artística e industrial, aí recorro a linhas de crédito de bancos." Em muitos filmes, usou economia familiar - caso de "Flores Raras", que custou R$ 13 milhões. "Lançamos mão de recursos próprios e de financiamentos bancários. Em 50 anos de empresa, nunca paramos por um dia que fosse as filmagens."

Desde o início, a LC Barreto funciona em esquema familiar. Barreto e Lucy comandaram a empresa até os anos 2000, quando Paula, filha do casal, se uniu a eles na chefia da produtora. "Trabalhar em família é mais difícil porque você acaba trabalhando no escritório e em casa. Tem horas que cansa, a gente quer se desligar. Não deu nem tempo de a gente transformar essa firma familiar em uma empresa propriamente dita", diz. "Já era tempo de tentar torná-la mais profissionalizada do ponto de vista de gestão. Sob a perspectiva da qualidade, está altamente profissionalizada; mas a gestão, não digo que seja amadora, mas é autodidata."
A família também controla outra razão social, a Filmes do Equador, que trabalha em conjunto com a LC Barreto (a primeira capta recursos, enquanto a segunda executa a produção). Hoje, produzem longas, filmes institucionais e especiais de TV. A sede funciona em um casarão de dois andares em Botafogo, zona sul carioca. O acervo da empresa fica em outro local, na zona oeste da cidade. "A casa de Botafogo é área preservada. Queremos fazer um centro cultural com espaço para receber alunos de cinema e estagiários, mostrar como se faz um planejamento de um filme."

No mês passado, Bruno Barreto começou as filmagens do longa "Crô", com o personagem cômico da novela da Rede Globo "Fina Estampa" (2011- 2012). No momento, a produtora tem também quatro salas alugadas em São Paulo. No total, a LC Barreto tem cerca de 25 funcionários fixos, a maior parte na administração. Mas o número aumenta muito na época de filmagens. "Em "Flores Raras", tivemos 120 pessoas trabalhando, entre motoristas, cozinheiros, técnicos... Contando com os indiretos, um filme gera de 300 a 400 empregos."

A renda dos filmes nas bilheterias conta muito, mas a fonte de renda da produtora é basicamente a exploração de seu (vasto) acervo, sobretudo na exibição para a TV a cabo. Barreto tem o copyright de 45 dos longas que produziu. "Isso é uma renda vegetativa, digamos assim. Às vezes dá para segurar [as despesas] só com isso, outras vezes não. O mercado internacional deveria ser não uma prioridade total, mas uma coisa importante para a gente. No exterior, você nãoo dinheiro: é quase sempre roubado. Se tivesse recebido tudo o que "Dona Flor" rendeu pelo mundo, eu estaria até emprestando para o Fundo Setorial [risos]".

O produtor conseguiu controlar a renda do longa apenas na Argentina e nos EUA porque abriu escritórios locais. "Fundamos uma empresa nos EUA, a Carnaval Films, em 1978. Lançamos o filme nós mesmos no mercado. Com o dinheiro, conseguimos produzir outros filmes, como o "Bye Bye, Brasil"."

Barreto também é um dos sócios do Canal Brasil, mas se dedica na maior parte do tempo à sua produtora. Ali, às vezes as tarefas se misturam, mas geralmente Lucy se ocupa da análise dos roteiros. Barreto fica mais atento às outras etapas. "Acredito mais é na coisa do "fazer". O produtor tem que estar presente permanentemente. Não é só um assinador de cheque: tem que ser um coautor."

Barreto acredita em cinema autoral - grande parte dos longas que produziu na vida seguem essa linha -, mas não pensa em um filme como atividade individual. "É algo artístico, mas também industrial. Um escritor pode se isolar e escrever. Um cineasta, por mais que queira ser apenas artista, no fundo é uma peça fundamental de um processo maior."

A filosofia produtiva de Barreto sempre caminhou no rumo do estabelecimento de uma indústria cinematográfica brasileira. Defende um cinema nacional competitivo, capaz de ganhar o mercado externo. "[Franklin] Roosevelt dizia: "Onde vão nossos filmes vão nossos produtos". O cinema é a grande arma interna de formação de consciência nacional nos EUA e de difusão e assimilação de costumes americanos pelo mundo. Issoo é culpa deles: é nossa, a gente permite isso. Não é questão de proibi-los, mas de impor coisas nossas."

Barreto diz que gasta 70% do seu tempo na militância da política do setor. No ano passado, defendeu até o fim a polêmica gestão da ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda. "A irmã do Chico [Buarque]? Sofreu sabotagem por parte do corpo de funcionários do ministério. Não tinha experiência, mas estava levando as coisas." Também aprova a sucessora, Marta Suplicy. "Está tendo uma atuação brilhante, cobra coisas básicas que estão lá paradas há muito tempo."

Ao rever a própria trajetória, Barreto tem alguns arrependimentos. Um deles é não ter produzido a cinebiografia sobre Cazuza (que ele viu crescer). Outro foi ter perdido a chance de contar a história da Cidade de Deus antes de Fernando Meirelles. Orgulha-se, porém, que dois filmes dos filhos, "O Quatrilho" (1995), de Fabio, e "O que É Isso, Companheiro?" (1997), de Bruno, tenham ficado entre os cinco finalistas no Oscar de filme estrangeiro. Ele afirma que o interesse pela estatueta seria, antes de tudo, estratégico. "O Oscar é uma jogada de marketing, não um certificado de qualidade. Ele te dá um trânsito maior, para negociar os direitos etc. Se um dia conseguirmos, ótimo. Mas issoo vai querer dizer que o cinema brasileiro melhorou."

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