domingo, 24 de fevereiro de 2013

Yoani e a ‘Senhor’ - Caetano Veloso


Nossos esquerdistas mereceriam mais confiança se tratassem Yoani com respeito

É difícil aceitar como progressista a atitude dos que agrediram Yoani Sanchez em sua chegada ao Brasil. E logo em minhas duas terras, Bahia e Pernambuco (ganhei cidadania da Assembleia Legislativa Pernambucana, a Casa de Joaquim Nabuco). Se um indivíduo eleva voz dissidente num país que mantém presos políticos por décadas, deveria receber o apoio dos que lutam pela justiça. Quando Marighella ficou sabendo o que se passava na União Soviética sob Stalin (pelas revelações que Nikita Kruschev, num esboço de perestroica-glasnost, incentivou), ficou semanas a fio em pranto. Para ser sincero, não me surpreenderam as revelações kruschevianas: meu pai, apesar de ser simpatizante de esquerda, sempre comentava que a Rússia stalinista podia esconder opressões brutais. Mas o pasmo entre comunistas foi grande. O chororô de Marighella pareceu desproporcional a alguns de seus companheiros, mas diz algo de profundamente bom sobre ele.

Não desconheço a possibilidade de interpretar os fatos políticos a partir de uma perspectiva que submeta o sentido moral do caso Yoani à crítica do desequilíbrio mundial. A força americana pode ser sentida a ponto de neguinho pôr sua capacidade de solidariedade abaixo de uma visão geral da luta. Aí Fidel pode ser visto como o herói que enfrenta o Dragão da Maldade, qualquer relativização desse enfrentamento sendo suspeito. Por que Obama não acaba com o bloqueio a Cuba? Yoani pode aparecer nesse quadro como uma colaboracionista. Mas como, se ela própria declara repúdio ao embargo?

Tive a honra de ser atacado juntamente com Yoani por Fidel em pessoa. Fidel escreveu o prefácio a um livro sobre Evo Morales (que nome! Sempre paro quando ouço ou leio o nome de Eva no masculino) e, nesse prefácio, me desancou por eu ter dito em entrevista que minha canção “Base de Guantánamo” não significava apoio à política de Estado cubana. Ali, o herói caribenho me equiparava à blogueira de milhões. Éramos, os dois, agentes do imperialismo americano. Inocentes úteis da potência capitalista. Gosto dos textos de Yoani. Fui a Havana em 1999 e sinto a presença da vida cubana neles. Eu teria mais confiança em nossos esquerdistas se eles a tratassem com respeito.

Gente próxima e distante estranhou que eu escrevesse que estou triste. Minha mãe morreu. Senti a passagem do tempo com violência. Mas leio “Porventura”, de Antonio Cicero, e a força (qualidade) dos poemas me revigora. Filósofo e poeta, Cicero é um dos grandes.

Recebi de presente essa maravilha que é o livro-antologia da revista “Senhor”. Gracias Ana Maria Mello e Ruy Castro. Em 1959, um vendedor de enciclopédias bateu à nossa porta em Santo Amaro. Ele oferecia a assinatura de uma revista cujos primeiros números trazia consigo. Meu irmão Rodrigo, a quem devo tanto, ficou impressionado com o que via e me chamou para que eu tomasse conhecimento da novidade. Ele sabia que eu ia gostar. Fiquei extasiado com as capas e os títulos das matérias: contos de grandes autores conhecidos e desconhecidos, cartuns geniais, comentários inteligentes e cheios de humor sobre assuntos diversos. Suponho que contei longamente sobre o efeito que tiveram sobre mim o primeiro LP de João Gilberto (que saiu em 1959) e, já a partir de 1960, as atividades culturais da Universidade da Bahia sob o reitor Edgard Santos. Devo ter mencionado a “Senhor” também. Mas não creio que tenha dito com todas as letras que essa revista desempenhou papel no mínimo igualmente determinante em minha formação. E estou certo de tê-la conhecido antes de ouvir João. O impacto foi enorme. Tudo o que eu adivinhava nas páginas de Millôr em “O Cruzeiro” (que eu guardava numa caixa) e nos contos de William Saroyan — a modernidade — aparecia desenvolvido nessa publicação. É emocionante para mim rever os desenhos de Glauco Rodrigues, Bea Feitler, Carlos Scliar; os artigos de Paulo Francis; as charges elegantíssimas de Jaguar (que traço!, que ideias!); os contos de Clarice. Curioso ler o texto de Ivan Lessa sobre justamente a nascente bossa nova. Ele, informadíssimo, no calor da hora já falava em Chet Baker. Mas reagia à Rolleiflex do “Desafinado” (e à canção como um todo) com rejeição semelhante à sofrida por imagens e sons tropicalistas poucos anos depois. Eu, que dependia da elegância da Bossa e da “Senhor”, já aprovava a liberdade da menção à marca de câmera e o humor do jogo com o verbo “revelar”. Lessa (que tem um texto engraçadíssimo e muito bem escrito no livro paralelo “SR, uma senhora revista”) censurava. Revelava sua enorme ingratidão. Mas ele saúda o surgimento de Carlos Lyra e Roberto Menescal (embora, como Bob Dylan, por cima de Jobim!).

7 comentários:

  1. lindo caetano! "!Eu teria mais confiança em nossos esquerdistas se eles a tratassem com respeito." nos tambem!!! que vergonha foi tudo isso! mas o q me consolou foi te ouvir a semana inteira. abraçaço. é lindo é comovente aquela voz dizendo "Ei" da maneira mais meiga que alguem possa dizer "ei" dizendo tudo! e ouvi aqui on line pela france culture teu disco sendo debatido analisado junto ao de nick cave o ultimo e um rappeur americano, dos tres o maior o mai amado é caetano!! fiz video com meu telefone mostrando rascunhos de poemas plantinhas da minha casa pros meus filhos com vc dizendo "ei" so isso a altura do meu amor por eles! obrigada a vc sempre! fica triste nao!! fica so de felicidade por ter tido o privilegio de receber o beijo da tua mae nos teus setenta anos! so vc!! so vcs!!grande todos!

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  2. Por que aqui no Brasil temos tanto horror a manifestações? Elas são uma forma coletiva de dizer "não gosto", "não quero", "não concordo". São pacíficas quando se deita na frente de um tanque, distribuem flores a policiais ou se escreve em peitos nus. Em geral, são mais tumultuadas, com gritos e empura-empurra, porque ali estão pessoas exaltadas mesmo. Não vi nada demais. Não iria lá porque, nesse caso, acho uma perda de tempo e inútil gasto de energia, mas daí a dizer que "são terroristas", como disse a moça sobre os meus vizinhos de Feira de Santana, é um certo exagero. E uma prova que tem razão o povo quando diz que pimenta no dos outros é refresco...
    No mais, se a Bahia toda ficou triste, quanto mais vocês, que tiveram o privilégio de ser filhos de uma mulher tão especial.

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  3. A vaia é democrática. Isso ficou pacificado nas discussões que se seguiram ao episódio da vaia ao Lula no Maracanã, lembra?

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  4. O brasileiro é criticado pelo sua subserviencia em não protestar... Nossos hermanos do sul, por exemplo, são aplaudidos em seus panelaçõs.
    Quando brasilerios protestam são criticados por isso.
    Os menos virulentos chamam isso (o protesto) de "deselegantes". Protestar é um exercício de liberdade de expressão e, talvez, a forma mais importante de expressá-la.

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    1. Protestar é democrático. Não deixar falar, urrar e puxar o cabelo não é democrático. É stalinismo do pior!

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  5. O que me espanta e o que me intriga nos protestos em desfavor da cubana, é por que esses mesmos mal educados não protestam contra os políticos corruptos, os desmandos da política brasileira, as mazelas sociais e outros males que assolam o país.

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  6. Os críticos à cubana fizeram balburdia graças à liberdade de expressão aqui existente - em Cuba não.

    Para estes a liberdade deveria ser controlada dentro do viés ideológico que apregoam. Só é livre aqueles que se curvam aos seus propósitos massificantes, “padronistas” e centralizadores. Para a esquerda a liberdade é relativa, ela deve ser “exercida” apenas dentro do seu invólucro, fora disso é coisa de burguês imperialista.

    A esquerda tem o direito de protestar, e o fez graças à liberdade que temos, mas, infelizmente a liberdade conferida aos protestos tinha o intuito de silenciar alguém que luta contra um modelo político repressor.

    No fundo tais protestantes queriam exercer a mesma força imposta pelos Castros desde a revolução.

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