sábado, 31 de maio de 2014

As condições do crime - José Castello

O Globo - 31/05/2014

MARCELO FERRONI É UM EFICIENTE CONSTRUTOR DE ATMOSFERAS, QUE MANOBRA COM LENTIDÃO E TENSÃO ASCENDENTE

A ficção tem a estrutura de um crime
de quarto fechado, em que um personagem
é morto em um cômodo
trancado por dentro. Podemos levantar
todas as hipóteses a respeito
do nascimento de uma narrativa,
mas o essencial sempre escapa e tem, até, um aspecto
incoerente. “Das paredes, meu amor, os escravos
nos contemplam”, segundo romance de
Marcelo Ferroni (Companhia das Letras), guarda
a disposição clássica de um romance policial. Há
um crime de quarto fechado — em que a morte
parece, em princípio, improvável e incongruente.
Tudo se passa em meio à atmosfera lúgubre de
uma fazenda, a dos Damasceno, cheia de histórias
de ascensão e poder, de conflitos, de violência e
também de fantasmas. O emaranhado de personagens
acelera, mas dispersa nossa atenção, de
modo que, quanto mais avançamos na leitura,
nossas certezas diminuem.

A estrutura — a mesa — está posta. Sufocado
pela longa tradição do romance policial, o leitor
não teria muito a esperar. Mas é justamente aqui
que ele se engana. Quanto mais ele acredita que
sabe, menos sabe. Quanto mais pensa em dominar
a história que lê, menos a domina. Quanto
mais convicções forma, mais elas se esfarelam.
Há uma constante frustração — que faz a narrativa
andar e nos envolver — muito semelhante à
do protagonista, Humberto Mariconda, um escritor
fracassado. Autor de “A porrada na boca risonha
e outros contos”, ele vê seu livro envolvido
em um grande silêncio. Não há repercussão —
embora diariamente ele vasculhe os jornais em
busca da crítica salvadora. Nada acontece — é
como se o livro não existisse.

Quando pediam a Tolstói que falasse de seus
livros, ele tinha uma resposta mortal: pedia que
os lessem. Esta lembrança do narrador é bastante
útil. É, de fato, muito difícil dizer o que é um
livro, ainda mais quando ele tem a estrutura de
um mistério. O risco da traição é grande. As possibilidades
de estragar o prazer do leitor, imensas.
Começo, então, falando não do livro que tenho
nas mãos — o de Ferroni — mas do livro que
há dentro desse livro — o de Humberto. Foi escrito
com um forte sentimento de raiva. À intensidade
dos sentimentos, porém, não corresponde a recepção
dos leitores. O livro de Humberto parece
mais um delírio pessoal do que uma obra. O que
justifica a epígrafe de Vladimir Nabokov à entrada
do romance de Ferroni: “Como
costuma ocorrer comigo em
momentos de muita atividade
elétrica na atmosfera e de raios
crepitantes, tive alucinações”.
Mas o livro não é uma alucinação,
é um fracasso mesmo. Assemelha-
se à quitinete em que
seu autor vive, e na qual acorda
“com o sol e a enxaqueca ardendo
nos olhos”, depois de
uma noitada amorosa.

Assim, em uma noite ambígua,
ele conhece Julia Damasceno, a mulher que o
convida para uma aventura: visitar a fazenda centenária
de sua família. “Concordei imediatamente
quando ela me propôs uma viagem”, relata. “Não
tinha como saber, naquele momento, que ela me
levava a um crime, a uma entrevista com mortos, a
um duelo”. Nessa fala, Ferroni antecipa o máximo
que pode a respeito do livro que temos nas mãos.
A partir daqui, grudados aos passos de Humberto,
a aventura fica por nossa conta. O protagonista
continua incomodado com o fracasso de seu próprio
livro, que é uma espécie de contraponto à empatia
crescente que o romance de Ferroni nos provoca.
Humberto sofre: “No dia em que deixei de
vê-lo exposto na livraria que frequentava,
reclamei de forma
amarga com o editor”.

Não é o caso da aventura que
ele mesmo vive. Na fazenda dos
Damasceno, envolve-se em um
longo passado que remonta à escravidão.
A história da família se
sintetiza na figura do atual patriarca,
“que me fitou com olhos de
fogo onde espectros gritavam”. A
sucessão de personagens serve,
antes de tudo, para embaçar a
visão do leitor, que se sente a toda hora desviado
de sua rota. Neste ambiente turvo, como o exemplar
de “A porrada na boca risonha” que levara
consigo, Humberto se sente desalojado. Até que os
hóspedes enfrentam uma tempestade, em que as
figuras se embaralham e nossa visibilidade diminui
mais ainda. “A saleta inteira balançava. Ouvi
batidas sequenciais no teto e pensei arrepiado
no tamanho da criatura peluda que se movia no
forro”. A lenda de escravos enterrados nas paredes
— um artifício do proprietário anterior para
fugir da pena pelo tráfico ilegal — torna tudo
mais difícil. “É só uma história de fantasmas”, explicam,
mas nada parece muito seguro. “É um
absurdo ficarmos reféns da natureza”, alguém
pondera. Mas não é só a natureza, ou a superstição
que o envolve naquela noite: são os próprios
mecanismos da ficção, essa máquina incansável,
sempre a marchar, sempre a ranger e a produzir
seus mistérios, que salta do livro de Humberto
para uma segunda ficção.

Um garoto, Carlos, namorado da restauradora
do casarão, aparece de repente e, com sua juventude,
sacode os alicerces. Na outra ponta da cronologia,
o velho Damasceno sobrevive às doenças
e surpreende seu médico. O garoto será um
personagem central a partir do momento em
que um crime parte ao meio o relato de Ferroni.
Um crime de quarto fechado, improvável, com
evidências insuficientes, mas dramático — e que
há que se desvendar. Os bons romances policiais,
como este “Das paredes, meu amor, os escravos
nos contemplam”, se baseiam não só na intriga
impecável, mas, talvez mais ainda, em uma atmosfera
cerrada, que a torne não só verossímil,
mas assustadora. Marcelo Ferroni é um eficiente
construtor de atmosferas, que manobra com lentidão
— para que nos deem nos nervos — e com
tensão ascendente.

Seu romance mostra que não é só o enredo bem
engendrado que define a qualidade literária. Há
um segredo de quarto fechado no interior de cada
narrativa, que envolve o controle do ritmo, a capacidade
de construir personagens convincentes e,
sobretudo, a construção de atmosferas densas,
que nos encubram, provocando uma ilusão de
verdade. A literatura não é verdadeira porque diz a
verdade, mas porque a simula. Porque a constrói
— denunciando, enfim, que toda verdade é sempre
uma construção a que nós humanos, desvalidos,
nos agarramos para seguir em frente.

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