sábado, 31 de maio de 2014

Suspeitas - Jose Miguel Wisnik

O Globo 31/05/2014

O artigo do multiartista escritor Nuno Ramos
na “Folha de S.Paulo”, na última quarta-feira,
intitulado “Suspeito que estamos...”, trata do
estado da coisa com que nos debatemos
diariamente sem saber direito como debatê-la
— o Brasil. Sugiro, a quem não leu, que leia o
quanto antes, se possível antes mesmo de ler
isso aqui. Entre outras implicações, o texto fala
da violência que nos faz girar com ela “como
um animal preso no poste”; da “burrice
urbana” a se espalhar por São Paulo, Salvador,
São Luís, Manaus, Natal; do “Caldeirão do
Hulk”, do Tropicalismo, de Ivete Sangalo, do
“Jornal Nacional”; do Estado e da esfera
privada, da política e da economia, do Plano
Real, do Bolsa Família, da ditadura e da
democracia; de Paulo Coelho, do padre
Marcelo Rossi e do pastor Edir Macedo; da
Portuguesa de Desportos e de Galvão Bueno;
tudo apontando para os personagens
anônimos da nossa dívida interna insaldável.

Como embrulhar num pacote só essa mixórdia
de história social, urbanismo, indústria cultural,
política, economia, religião e futebol, indo
do plano geral ao close, sem pretensão, sem cair no vozerio
das opiniões e sem perder o fio? O fato é que a
novidade do texto está, antes do que em seus conteúdos,
no modo como chega a eles. Nuno Ramos diz ter
relutado em aceitar o convite para escrever na página
de Tendências e Debates da “Folha” por não se sentir
preparado para tratar de nenhum dos temas propostos
pelo jornal — por não ser autoridade em nenhum.
Quando aceita, é para falar não do que sabe, mas do
que suspeita. O artigo tem, então, a forma de uma engenhosa
enumeração de suspeitas interligadas sobre o
Brasil atual, com autoridade dúbia de escritor que, assumindo
a condição do não sabido, vasa as fronteiras
entre os assuntos e acaba formulando o que não se
diz. É desse fraseado, dessa espécie de drible ensaístico
e poético, que saem os estranhos gols que vêm na
sequência. Inclusive porque o estado de suspeita, isto
é, de latência, de um processo não formado que se lê
nos indícios, é o melhor canal de contato, talvez o único,
com aquilo que estamos vivendo.

Acredito ter lido hoje uma notícia que dá o Brasil
como campeão mundial de homicídios. Nuno Ramos
suspeita que a violência seja “o tema primordial
e decisivo da sociedade brasileira”, a marcar viciosamente
todos os outros. A convivência direta ou indireta,
visível ou obscura, histórica e atual, com assassinatos,
age como um “vírus de mutações constantes e
velozes”, confundindo as noções de alto e baixo, direito
e esquerdo, bem e mal, certo e errado, sugadas para
o ralo de uma agoridade sem lastro cujo meio por
excelência, agora suspeito eu, é a televisão, com sua
onipresença sem contraponto e sem contraste.

Antes de chegar a ela, Nuno testemunha as cidades
que apodrecem ao sol, onde ruínas tombadas
pelo Iphan copulam com “despautérios azulejados
de 30 andares”, desconectados de qualquer
propósito cívico, e onde as praias estão comprimidas
por paredões egoístas de edifícios. (Acredito
que o filme “O som ao redor” capture essa mesma
imagem de uma violência surda entranhada na
paisagem urbana.)

As cenas de redenção de pobres, promovidas no
programa de Luciano Hulk, mereceriam ser vistas
naquilo que têm de cruel, humilhante e cretino. Ganharíamos
em ter claro, suspeita ele, o que há de ridículo
na coreografia de rostos virando de um para o
outro e do outro para a câmera, com decorada naturalidade,
na cena diária do “Jornal Nacional”: por
que a nossa mais onipresente fonte de notícias precisa,
afinal, desse teatro infantil? Por que as figuras
televisivas ganham o status de ícones intocáveis, à
maneira dos santos? E o que representa, em termos
de violência imaginária e real, acrescento eu, o bombardeio
publicitário incessante que acena com emplastos
Brás Cubas miríficos — bebidas, automóveis,
cartões de crédito — a uma sociedade fortemente
desigual e a uma população sem o poder
aquisitivo correspondente?

Acho que esse gap acompanha aquele outro
apontado por Nuno Ramos: a migração contemporânea
do imaginário político para o econômico se
fez aqui, ao contrário dos países desenvolvidos, sem
que uma razoável distribuição de renda tivesse
ocorrido antes, sem que se pudesse prescindir do
político, e sem que o Deus-PIB se curvasse ainda, e
muito mais, ao Deus-cidadania. O PT, que deveria
cumprir esse papel histórico, não quis ou não pôde
fazê-lo. Sobreveio um encurtamento da imaginação
e da vontade política, e uma vida cultural cujos
parâmetros se confundiram ou se perderam.


Não falo nada disso em tom menor. Sinto a demonstração
da capacidade de abordar o imaginário
nacional concreto — de Paulo Coelho, Marcelo Rossi
e Edir Macedo como privatizadores do infinito, por
exemplo — sem complacência, sem maniqueísmo e
sem ressentimento, com imaginação crítica e artística,
como um indício animador. Vejo isso nas reações
de alegria que o texto de Nuno Ramos provocou.

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