sábado, 8 de março de 2014

Paulo na neblina - José Castello

O Globo 08/03/2014

A POESIA DE
PAULO NUNES
NÃO PRODUZ
SENTIDOS, MAS
SENSAÇÕES. NÃO É
UMA POESIA PARA
SER ENTENDIDA,
MAS SENTIDA

É triste e belo “O corpo no escuro”, livro de poemas de Paulo Nunes (Companhia das Letras). Em pleno ano de 2014, Paulo recolhe os poemas de “OBVNI”, conjunto que guarda sua produção poética entre 1990 e 1995, e os une aos de “Tempo das águas”, versos escritos entre 1998 e 2002. Dá um salto para trás para chegar ao presente. Encontramos, assim, em um único livro, dois poetas distintos com o mesmo nome. Dois excelentes poetas.

Em um poema de abertura, “Confissão e prólogo”, Paulo nos fornece uma chave para entrar em seu livro. Escreve: “para um dia quem sabe compreender/ que a poesia, esta sempre outra coisa,/ não é nem mosca e nem zênite, porém os dois juntos, amantes”. De fato, a acoplagem de duas escritas distintas, de diferentes períodos da vida do poeta, produz um efeito dissonante e intrigante. Rompendo as referências do tempo, consideremos os dois conjuntos — como deve ser — apenas duas partes de um mesmo livro. Um novo livro, de um poeta que, a caminho dos 50 anos de idade, desponta.

Na primeira parte, Paulo Nunes é um poeta fortemente visual, que escreve como se pintasse quadros. “Vemos” seus versos, é difícil não chegar a vê-los, de tão nítidos e intensos, apesar da grande quantidade de sombras que os envolve. São poemas de nascimento: “as palavras se abrem/ o mundo se revela/ e dentro, intacto/ o homem que o escava”. É o homem (o poeta) que, para nascer, deve escavar a si mesmo. Por mais forte que sejam as boas influências, um poeta é seu próprio pai, ou poeta não é.

Uma poesia que nasce sob o signo do segredo, exposto nesta pergunta: “mas além da carne/ e embaixo o osso/ o que mais prende/ a unha?” É com unhas afiadas que Paulo Nunes grafa seus versos — como se talhasse imagens primitivas em uma parede rústica. Com suas perguntas, o poeta tenta ordenar o caos da existência — mas, ao fim, é sempre com as perguntas que fica, como se registra em um poema chamado justamente “Perguntas”. Que fecha assim: “o que é coração, o que é relógio/ o que é lógico, o que é absurdo/ onde habita cada um?”

O que procura um poeta? Paulo nos responde com outra pergunta: “procurando algo, talvez um nome?” Não é uma busca fácil. Explica: “e como decidir, se os ponteiros/ apontam diferentes direções/ e também nunca se decidem?/ a boca não pergunta nem responde”. Imagens súbitas irrompem em meio às divagações do poeta. Assim: “e da sala ao quarto, no corredor/ (...)/ o espelho pensa rápido, devolve/ a imagem que passa e bate a porta”. Visões atordoantes, cortinas que se abrem e logo depois se fecham, relâmpagos. Vencem, na maior parte das vezes, as sombras e o escuro, como o próprio Paulo atesta: “o corpo no escuro/ independe das formas/ existe sem a linha/ que lhe retém a cor/ e o separa de tudo”. Mesmo assim, ainda que “sem olhos, sem espelho”, este corpo no escuro ainda pode esboçar um gesto que altera a paisagem: “pode/ estender um braço/ e acender a luz”.

No escuro, “solto de si”, esse corpo ainda “deixa um fio de ar/ que, enquanto avança/ lhe assegura o retorno”. É na escuridão que um poeta resiste. É ali, ao abrigo das sombras, que ele trama sua precária escrita — conjunto de raios em meio às trevas. Apesar da escrita feroz, o poeta permanece preso. Diz: “Crucificou-se nos ponteiros/ de um relógio imenso/ e só por isso se movimenta”. Movimento de prisioneiro. Escrita que é sempre uma procura de libertação. Vive num mundo “estático e pronto” e escreve para resistir. Escreve para ser. Mas, por mais que escreva, sabe que o ato — a vida — sempre precede a escrita. Diz: “que palavra finge a fruta/ e se farta, este segredo/ se não mordes a maçã?”

Na lírica de Paulo Nunes, a poesia não produz sentidos, mas sensações. “O braço mecânico/ no abraço descansa —/ no gesto inútil/ adivinha-se o sangue”. Não é uma poesia para ser entendida, mas sentida. Avizinha- se não só da pintura, mas também da música. É uma poesia não só plástica, mas lírica. A lírica de Paulo alarga e eleva o sujeito humano. Escreve o poeta: “não era um monstro/ apenas um homem/ no minuto antes/ (coisa mais presa)/ de virar pássaro”. A mulher se confunde com sua dança. Os limites do real fraturam. Existe uma neblina — e também um sangue — que insistem em reaparecer. É uma poesia enigmática, que se processa (está no título de um dos poemas) como um trabalho noturno. Trabalho noturno que dá o tom da segunda parte do livro, dominada pela presença inacessível da morte.

Trata-se agora de uma poesia mais mística, ao fundo da qual se entrevê, muitas vezes, o vulto de Deus. Embora a prece central — “dai-nos a nós mesmos” — remeta o homem sempre de volta a si. Ninguém pode deter a correnteza do tempo, resta-nos nele viajar, com obstinação e coragem. Até porque a morte é o nada. “Há malas vazias/ e, no entanto, prontas”. Envelhecer é colocar-se diante do indecifrável. Como pano de fundo, o silêncio. Na zoeira do mundo, o silêncio é uma cola “que tudo une”. A poesia de Paulo trata, agora, deste grande silêncio no qual estamos todos envolvidos. O poeta busca um sentido — mesmo sabendo que não o encontrará.

A precariedade dá o tom de seus versos. Em um poema dedicado a Rembrandt, ele escreve: “Enfim, qual pouco de vida/ sobre que matéria (morta?)/ muito além da moldura/ nos deixará entrever/ que tudo é apenas tinta”? Nesse ponto, a poesia metafísica de Paulo se aproxima da oração. “Avança sobre a razão/ e também sobre a loucura./ Não escolhe quem: perdoa./ Sem ninguém pedir, perdoa”. Novamente, o silêncio.

Os sentimentos persistem. Eles estão além da matéria e além dos atos. “E cai a mão, não o carinho./ O carinho continua/ na brisa, na chuva”. É uma poesia que avança “apesar de”. Não importa a fragilidade da existência. Não importa também a impossibilidade de um sentido. Nada disso influi, se o poeta — mesmo perdido em meio à névoa — insiste em caminhar e escrever. Tudo o que resta é o lamento de um poeta triste: “Tédio, se houve, respirava-se,/ enquanto inocentes aranhas/ teciam, pensando nas moscas,/ aquilo que alguns chamam: vida”.

Um comentário:

  1. belo texto, digno do Paulo e de sua poesia feita a margem de modismos ou imagens fáceis. Poesia que resiste. A impressão que fica é que ele vive poesia: come, bebe, dorme, acorda poesia. Como diria Octávio Paz: "...ouvir com os olhos/ Ver com ouvidos - nos obriga a ouvir - a ouvir-se."

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