Valor Econômico -
23/05/2014
Retomo a discussão sobre a dicotomia entre esquerda e direita iniciada
em minha coluna de duas semanas atrás, tema abordado também por Pedro
Floriano Ribeiro, sexta-feira da semana passada. Em minha coluna apontei
que a polarização se estrutura com relação à questão da igualdade, pois
enquanto a esquerda propugna pela igualdade, a direita faz o oposto.
Essa
categorização pode causar algum estranhamento, primeiramente aos que
compreendem que a distinção crucial entre ambas se refere, na realidade,
à maior ou menor intervenção estatal na economia; em segundo lugar,
àqueles que supõem a igualdade como um princípio fundamental, não
havendo quem a ela se oponha. Na verdade, as coisas são um pouco mais
complicadas do que presume esse senso comum.
A associação
automática entre a esquerda e o intervencionismo econômico decorre de um
posicionamento muito específico com relação ao assunto, que tem como
referência a perspectiva econômica liberal. Para esta, com efeito, tal
intervenção deve se ater ao mínimo indispensável à proteção dos
contratos e da propriedade, bem como à solução de certos problemas de
ação coletiva necessários à produção de bens públicos, permitindo que o
mercado se ocupe sozinho da alocação ótima dos recursos. Na medida em
que tal posição se assume como de direita, compreender-se-ia que a
intervenção nos mercados seria coisa da esquerda. Mas nem sempre é
assim.
Desigualdades não são só econômicas, mas também sociais
Primeiramente,
porque alguns intervencionismos são de direita. Para ficarmos no caso
brasileiro, não seria possível dizer que não tivesse uma orientação de
direita a forte intervenção estatal que caracterizou o
desenvolvimentismo do regime militar. E por que era de direita tal
intervencionismo? Porque seu condão não era igualitário, mas ao
contrário, promovia o aumento das desigualdades. Vivia-se um tempo cuja
orientação era, declaradamente, a de primeiro fazer o bolo crescer para
depois distribuí-lo. Assim, o aumento da desigualdade era notado como
necessário à promoção do crescimento, mediante o acúmulo de capital e
seu consequente investimento.
Mas o entendimento de que a
desigualdade fomenta o crescimento não é peculiar à direita
intervencionista. Ele é explícito também em correntes importantes do
liberalismo econômico. Um prócer do pensamento econômico liberal, Ludwig
von Mises, dizia categoricamente que "a desigualdade de renda e de
riqueza é uma característica inerente a uma economia de mercado. A
eliminação desta desigualdade destruiria completamente qualquer economia
de mercado", afinal, "em um sistema em que haja desigualdade, o egoísmo
impele o homem a poupar e a procurar investir sua poupança de maneira a
melhor atender às necessidades mais urgentes dos consumidores. Em um
sistema igualitário, essa motivação desaparece". Ou seja, a desigualdade
é necessária para que o mercado funcione, sendo, portanto, desejável.
Por
isso, o intervencionismo apenas pode ser associado à esquerda se seu
condão for igualitário. São condizentes com um intervencionismo de
esquerda políticas de redistribuição de renda, que oneram os mais ricos e
transferem recursos para os mais pobres mediante diferentes tipos de
política social. O mesmo vale para políticas regulatórias que obrigam os
próprios agentes privados a promover algum tipo de redistribuição, como
é o caso do salário mínimo. O mero desenvolvimentismo não pode ser
entendido da mesma forma, pelas razões já indicadas.
Aliás,
decorre da diferença nas políticas públicas - mais do que nos valores
professados - a oposição crucial entre esquerda e direita. Afinal,
existe uma tendência secular à difusão da igualdade como um princípio
moral, reforçando o entendimento generalizado de que ninguém deveria se
opor a ela. Por essa razão, o que se torna efetivamente um problema
político é como passar da vaga profissão de fé à prática, implementando
políticas que de fato produzam equalização. Ocorre, porém, que são
justamente as políticas públicas que suscitam os maiores conflitos.
Impostos
mais altos e progressivos sobre a renda e a propriedade geram reação
dos que são onerados pela busca da equalização. Por questionarem o
mérito profissional e a herança familiar como únicas formas aceitáveis
de acesso à riqueza, políticas de transferência de renda para os mais
pobres ofendem convicções arraigadas e sofrem rejeição de parte daqueles
melhor posicionados. O mesmo se dá com políticas que têm o condão de
reduzir não só as diferenças de renda, mas também o acesso a lugares e
símbolos de distinção social baseados na capacidade de consumo: a perda
da exclusividade, quando concretizada, torna-se dolorosa para muitos que
antes se viam como detentores de privilégios inacessíveis à maioria.
Nessas horas, a dicotomia direita-esquerda se explicita novamente, no
discurso e nas atitudes.
A conflito acerca da igualdade também
ocorre em dimensões não diretamente econômicas, como orientação sexual,
gênero e etnia. Uma política como a do direito ao casamento entre
pessoas do mesmo sexo é igualitária e, portanto, de esquerda, porque
busca tratamento igual a cidadãos que, devido à sua diversidade com
relação ao padrão predominante, se viam relegados a uma condição
inferiorizada ou clandestina. O mesmo vale para políticas que assegurem a
mulheres e negros tratamento e oportunidades iguais àqueles conferido a
homens e brancos, respectivamente. É isto que faz com que a reação a
tais políticas possa ser classificada como uma posição de direita, mesmo
que não se trate de questões especificamente econômicas.
Nestes
casos, assim como na distribuição da riqueza, a intervenção estatal tem
caráter esquerdista quando seu propósito é igualitário, buscando
alterar o que é espontaneamente produzido pela sociedade ou pelo
mercado. Por outro lado, políticas de negação ou estigmatização das
diferenças, que reforçam a condição social desigual de indivíduos e
grupos sociais diversos - como, por exemplo, a proposta de "cura gay" ou
a segregação racial - são claramente intervenções estatais de direita.
Cláudio
Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
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